O Céu e o Inferno ou a justiça divina segundo o Espiritismo
Contendo
Exame comparado de doutrinas
sobre a passagem da vida corporal à vida espiritual,
sobre as penalidades e recompensas futuras,
sobre os anjos e demônios, sobre as penas, etc.
Seguido de numerosos exemplos
acerca da situação real da alma durante e depois a morte.
Por
Allan Kardec
“Por mim mesmo juro — disse o Senhor Deus — que não quero a morte do ímpio, senão que ele se converta, que deixe o mau caminho e que viva.” (EZEQUIEL, 33:11.)
O título desta obra indica claramente seu objeto. Reunimos aqui todos os elementos capazes de esclarecer o homem sobre seu destino. Como em nossos outros escritos sobre a doutrina espírita, não pusemos aqui nada que seja produto de um sistema preconcebido ou de uma outra concepção pessoal que não teria nenhuma autoridade: tudo aqui é deduzido da observação e da concordância dos fatos.
As ideias prematuras abortam, porque não se está maduro para compreendê-las, e a necessidade de uma mudança de posição ainda não se faz sentir. Hoje é evidente para todo o mundo que se manifesta um imenso movimento na opinião; realiza-se uma reação formidável no sentido progressivo contra o espírito estacionário ou retrógrado da rotina; os satisfeitos da véspera são os impacientes do dia seguinte. A humanidade está em trabalho de parto; existe alguma coisa, uma força irresistível que a impele para diante; ela é como um jovem saído da adolescência que entrevê novos horizontes sem os definir, e se livra dos cueiros da infância. Deseja-se algo melhor, alimentos mais sólidos para a razão; mas esse melhor permanece vago; é procurado; todo mundo se dedica a isso, desde o crente até o incrédulo, desde o trabalhador agrícola até o cientista. O universo é um vasto canteiro de obras; uns demolem, outros reconstroem; cada qual talha uma pedra para o novo edifício, cuja planta definitiva só o grande Arquiteto possui, e cuja economia se compreenderá apenas quando suas formas começarem a desenhar-se acima do solo. Foi esse momento que a soberana sabedoria escolheu para o advento do Espiritismo.
A primeira parte desta obra, intitulada Doutrina, contém o exame comparado das diversas doutrinas sobre o Céu e o Inferno, os anjos e os demônios, as penas e as recompensas futuras; o dogma das penas eternas é aqui encarado de uma maneira especial, e refutado por argumentos tirados das próprias leis da natureza, e que lhe demonstram, não só o lado ilógico, já assinalado cem vezes, mas a impossibilidade material. Com as penas eternas desaparecem naturalmente as consequências que se acreditara poder tirar daí.
A segunda parte encerra inúmeros exemplos apoiando a teoria, ou melhor, que serviram para estabelecer a teoria. Eles devem sua autoridade à diversidade de tempos e lugares em que foram obtidos, pois se emanassem de uma única fonte, poder-se-ia vê-los como produto de uma mesma influência; eles devem-na, além disso, à sua concordância com o que se obtém todos os dias em toda a parte onde há dedicação às manifestações espíritas de um ponto de vista sério e filosófico. Esses exemplos poderiam ter sido multiplicados ao infinito, pois não há centro espírita que não possa fornecer notável contingente deles. Para evitar repetições fastidiosas, precisamos fazer uma escolha entre os mais instrutivos. Cada um desses exemplos é um estudo, em que todas as palavras têm seu alcance para todo aquele que as meditar com atenção, pois de cada ponto jorra uma luz sobre a situação da alma após a morte e sobre a passagem, até agora tão obscura e tão temida, da vida corpórea à vida espiritual. É o guia do viajante antes de entrar num país novo. A vida de além-túmulo desenrola-se aí sob todos os seus aspectos, como um vasto panorama; cada qual extrairá daí novos motivos de esperança e de consolo, e novos apoios para reforçar sua fé no futuro e na justiça de Deus.
As mesmas razões que nos fizeram omitir os nomes dos médiuns no Evangelho segundo o Espiritismo, nos fizeram abster-nos de nomeá-los nesta obra, feita para o futuro ainda mais do que para o presente. Eles têm tanto menos importância quanto não poderiam se atribuir o mérito de uma coisa para a qual seu próprio espírito não participou com nada. A mediunidade, aliás, não é concedida a tal ou tal indivíduo; é uma faculdade fugitiva, subordinada à vontade dos Espíritos que querem comunicar-se, a qual se possui hoje e que pode faltar no dia seguinte, que nunca é aplicável a todos os Espíritos sem distinção, e, por isso mesmo, não constitui um mérito pessoal como o faria um talento adquirido pelo trabalho e pelos esforços da inteligência. Os médiuns sinceros, aqueles que compreendem a gravidade de sua missão, consideram-se como instrumentos que a vontade de Deus pode destruir quando lhe aprouver, se não agirem segundo seus desígnios; eles se regozijam com uma faculdade que lhes permite tornarem-se úteis, mas não tiram daí nenhuma vaidade. Aliás, conformamo-nos neste ponto aos conselhos de nossos guias espirituais.
A Providência quis que a nova revelação não fosse privilégio de ninguém, mas que tivesse órgãos em toda a Terra, em todas as famílias, entre os grandes como entre os pequenos, segundo estas palavras das quais os médiuns do nosso tempo são a realização: “Nos últimos tempos, disse o Senhor, verterei do meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos jovens terão visões e vossos anciãos terão sonhos. Naqueles dias, verterei do meu Espírito sobre meus servos e minhas servas, e eles profetizarão.” (Atos, cap. II, v. 17, 18.)
Primeira parte — Doutrina
Capítulo I — O futuro e o nada
Sejam quais forem as consequências, se ela fosse verdadeira, seria preciso aceitá-la, e não seriam sistemas contrários, nem o pensamento do mal que daí resultaria, que poderiam fazer que ela não fosse. Ora, não se deve dissimular que o ceticismo, a dúvida, a indiferença, ganham terreno a cada dia, apesar dos esforços da religião; isto é positivo. Se a religião é impotente contra a incredulidade, é porque lhe falta alguma coisa para combatê-la, de tal modo que se ela permanecesse na imobilidade, em um tempo dado estaria irremediavelmente ultrapassada. O que lhe falta neste século de positivismo, em que se quer compreender antes de crer, é a sanção de suas doutrinas por fatos positivos; é também a concordância de certas doutrinas com os dados positivos da ciência. Se ela diz branco e os fatos dizem preto, é preciso optar entre a evidência e a fé cega.
* Um jovem de dezoito anos sofria de uma doença cardíaca declarada incurável. A ciência dissera: Ele pode morrer dentro de oito dias, como dentro de dois anos, mas daí não passará. O jovem sabia disso; imediatamente abandonou todo estudo, e entregou-se a todo tipo de excessos. Quando lhe mostravam quão perigosa era uma vida desregrada no seu estado, ele respondia: Que me importa, já que só tenho dois anos de vida? De que me serviria cansar o espírito a aprender? Aproveito o melhor possível os últimos momentos e quero divertir-me até o fim. Eis a consequência lógica do niilismo.
Se esse jovem fosse espírita, teria dito para si mesmo: A morte destruirá apenas meu corpo, que deixarei como uma roupa desgastada, mas meu Espírito viverá sempre. Eu serei, em minha vida futura, o que tiver feito de mim mesmo nesta vida; nada do que eu adquiri aqui de qualidades morais e intelectuais se perderá, pois serão ganhos para meu adiantamento; toda imperfeição da qual eu me despojar é um passo a mais na direção da felicidade; minha felicidade ou infelicidade no porvir dependem da utilidade ou inutilidade de minha existência presente. É, portanto, do meu interesse aproveitar o pouco de tempo que me resta, e evitar tudo o que poderia diminuir minhas forças. Qual dessas duas doutrinas é preferível?
4. É neste estado de coisas que o Espiritismo vem opor um dique à invasão da incredulidade, não só pelo raciocínio, não só pela perspectiva dos perigos que ela acarreta, mas pelos fatos materiais, fazendo perceber, pelas mãos e os olhos, a alma e a vida futura.
Cada qual é livre sem dúvida em sua crença, de crer em alguma coisa ou de não crer em nada; mas aqueles que procuram fazer prevalecer no espírito das massas, sobretudo da juventude, a negação do futuro, apoiando-se na autoridade de seu saber e no ascendente de sua posição, semeiam na sociedade germes de distúrbio e de dissolução, e incorrem numa grande responsabilidade.
A educação, sem dúvida nenhuma, modifica as qualidades intelectuais e morais da alma; mas aqui se apresenta outra dificuldade. Quem dá à alma a educação para fazê-la progredir? Outras almas que, por sua origem comum, não devem estar mais avançadas. E depois, aliás, de que serve este aperfeiçoamento, de que servem tantos esforços para adquirir talentos e virtudes, de que serve trabalhar para o progresso da humanidade, se tudo isso deve ir se precipitar e se perder no oceano do infinito, sem proveito para o futuro de cada um? Mais valeria permanecer o que se é, selvagem ou não, beber, comer, dormir tranquilamente sem se torturar o espírito. Por outro lado, a alma, voltando ao Todo Universal de onde saíra, depois de ter progredido durante a vida, traz um elemento mais perfeito; de onde decorre que esse todo deve, com o tempo, ficar profundamente modificado e aperfeiçoado. Como explicar que saiam daí incessantemente almas ignorantes e perversas?
Não podendo a divindade ser concebida sem o infinito das perfeições, pergunta-se como um todo perfeito pode ser formado de partes tão imperfeitas e necessitando progredir. Estando cada parte submetida à lei do progresso, daí resulta que o próprio Deus deve progredir; se ele progride sem cessar, deve ter sido, na origem dos tempos, muito imperfeito. Como um ser imperfeito, formado de vontades e de ideias tão divergentes, pôde conceber as leis tão harmoniosas, de tão admirável unidade, sabedoria e previdência que regem o universo? Se todas as almas são porções da divindade, todas concorreram para as leis da natureza; como explicar que murmurem sem cessar contra essas leis que são sua obra? Uma teoria não pode ser aceita como verdadeira a não ser com a condição de satisfazer a razão e de dar conta de todos os fatos que ela abarca; se um único fato a desmentir, é que ela não está com a verdade absoluta.
Capítulo II — Da apreensão diante da morte
Causas da apreensão diante da morte.
4. Para se libertar das apreensões diante da morte, é preciso encarar esta última de seu verdadeiro ponto de vista, ou seja, ter penetrado pelo pensamento no mundo espiritual e ter feito deste uma ideia tão exata quanto possível, o que denota no Espírito encarnado um certo desenvolvimento, e uma certa aptidão a se desprender da matéria. Naqueles que não estão suficientemente avançados, a vida material ainda leva a melhor sobre a vida espiritual. Apegando-se ao exterior, o homem vê a vida apenas no corpo, ao passo que a vida real está na alma; estando o corpo privado de vida, a seus olhos tudo está perdido, e ele se desespera. Se, em vez de concentrar o pensamento sobre a vestimenta exterior, ele o dirigisse para a própria fonte da vida, para a alma que é o ser real e sobrevivente a tudo, ele lamentaria menos o corpo, fonte de tantas miséria e dores; mas para tanto é preciso uma força que o Espírito adquire apenas com a maturidade. A apreensão diante da morte deve-se então à insuficiência das noções sobre a vida futura; mas ela denota a necessidade de viver, e o temor de que a destruição do corpo seja o fim de tudo; ela é assim provocada pelo secreto desejo da sobrevivência da alma, ainda velada pela incerteza. A apreensão diminui à medida que a certeza se forma; desaparece quando a certeza é completa. Eis o lado providencial da questão. Era sábio não ofuscar o homem cuja razão ainda não era bastante forte para suportar a perspectiva demasiado positiva e demasiado sedutora de um futuro que o teria feito negligenciar o presente necessário a seu avanço material e intelectual.
5. Este estado de coisas é mantido e prolongado por causas puramente humanas que desaparecerão com o progresso. A primeira é o aspecto sob o qual é apresentada a vida futura, aspecto que poderia bastar a inteligências pouco avançadas, mas que não consegue satisfazer as exigências da razão dos homens que refletem. Então, eles dizem a si mesmos, se nos apresentam como verdades absolutas princípios contraditos pela lógica e os dados positivos da ciência, é que não são verdades. Daí decorre para alguns a incredulidade, para grande parte uma crença misturada com dúvida. A vida futura é para eles uma ideia vaga, uma probabilidade mais do que uma certeza absoluta; eles creem nela, gostariam que existisse, e contra sua vontade dizem a si mesmos: Se, no entanto, assim não for! O presente é positivo, ocupemo-nos primeiro com ele: o futuro virá por acréscimo. E depois, dizem a si mesmos ainda, em última análise, o que é a alma? É um ponto, um átomo, uma centelha, uma chama? Como ela sente? Como vê? Como percebe? A alma não é para eles uma realidade efetiva: é uma abstração. Os seres que lhes são caros, reduzidos ao estado de átomos em seu pensamento, estão por assim dizer perdidos para eles, e não têm mais a seus olhos as qualidades que os faziam amá-los. Não compreendem nem o amor de uma centelha, nem aquele que se pode ter por ela, e eles mesmos ficam mediocremente satisfeitos de ser transformados em mônadas. Daí o retorno ao positivismo da vida terrestre que tem algo de mais substancial. O número daqueles que são dominados por estes pensamentos é considerável.
Por que os espíritas não se apreendem diante da morte.
Capítulo III — O céu
O astrônomo Ptolomeu* contava onze, dos quais o último era chamado Empíreo**, por causa da resplandecente luz que aí reina. Ainda hoje é o nome poético dado ao lugar da glória eterna. A teologia cristã reconhece três céus; o primeiro é o da região do ar e das nuvens; o segundo é o espaço onde se movem os astros; o terceiro além da região dos astros é a morada do Altíssimo, a morada dos eleitos que contemplam Deus frente a frente. É de acordo com esta crença que se diz que São Paulo foi transportado ao terceiro céu.
* Ptolomeu viveu em Alexandria, Egito, no segundo século da era cristã.
** Do grego, pur ou pyr, fogo.
5. O homem é composto de corpo e de Espírito; o Espírito é o ser principal, o ser de razão, o ser inteligente; o corpo é o envoltório material que o Espírito reveste temporariamente para o cumprimento de sua missão na terra, e a execução do trabalho necessário ao seu avanço. O corpo, gasto, destrói-se, e o Espírito sobrevive à sua destruição. Sem o Espírito, o corpo não é mais do que uma matéria inerte, como um instrumento privado do braço que o faz agir; sem o corpo, o Espírito é tudo: a vida e a inteligência. Deixando o corpo, ele volta ao mundo espiritual de onde saíra para se encarnar. Há portanto o mundo corporal, composto dos Espíritos encarnados, e o mundo espiritual, formado pelos Espíritos desencarnados. Os seres do mundo corporal, devido a seu envoltório material, estão ligados à Terra ou a qualquer outro globo; o mundo espiritual está em toda a parte, à nossa volta e no espaço; nenhum limite lhes é designado. Devido à natureza fluídica de seu envoltório, os seres que o compõem, em vez de se arrastar penosamente pelo chão, vencem as distâncias com a rapidez do pensamento. A morte do corpo é a ruptura dos vínculos que os mantinham cativos.
6. Os Espíritos são criados simples e ignorantes, mas com a aptidão de adquirir tudo e de progredir, em virtude de seu livre-arbítrio. Pelo progresso, eles adquirem novos conhecimentos, novas faculdades, novas percepções, e, por conseguinte, novos prazeres desconhecidos dos Espíritos inferiores; eles veem, ouvem, sentem e compreendem o que os espíritos atrasados não podem ver, nem ouvir, nem sentir, nem compreender. A felicidade é proporcional ao progresso realizado; de modo que, de dois Espíritos, um pode não ser tão feliz quanto o outro, unicamente porque não está tão avançado intelectual e moralmente, sem que eles precisem estar cada qual num lugar distinto. Embora estando um ao lado do outro, um pode estar nas trevas, ao passo que tudo é resplandecente à volta do outro, absolutamente como para um cego e alguém, que vê que se dão as mãos: um percebe a luz, a qual não faz nenhuma impressão no seu vizinho. Sendo a felicidade dos Espíritos inerente às qualidades que eles possuem, eles a obtêm em toda parte onde se encontrem, na superfície da Terra, em meio aos encarnados ou no espaço. Uma comparação vulgar fará compreender ainda melhor esta situação. Se num concerto se acham dois homens, um, bom músico com ouvido treinado, o outro sem conhecimento de música e com o sentido da audição pouco delicado, o primeiro experimenta uma sensação de felicidade ao passo que o segundo permanece insensível, porque um compreende e percebe o que não causa nenhuma impressão no outro. Assim se dá com todos os gozos dos Espíritos que são proporcionais à aptidão de senti-los. O mundo espiritual tem esplendores em toda parte, harmonias e sensações que os Espíritos inferiores, ainda submetidos à influência da matéria, nem mesmo entreveem, e que são acessíveis somente aos Espíritos depurados.
7. O progresso, entre os Espíritos, é fruto de seu próprio trabalho; mas, como eles são livres, trabalham em seu próprio avanço com mais ou menos atividade ou negligência, segundo sua vontade; apressam assim ou retardam seu progresso, e em consequência sua felicidade. Enquanto uns avançam rapidamente, outros ficam estagnados por longos séculos nas posições inferiores. São, portanto, os próprios artífices de sua situação, feliz ou infeliz, segundo esta máxima do Cristo: “A cada um segundo suas obras!” Todo Espírito que fica para trás só pode acusar a si mesmo, assim como aquele que avança tem todo o mérito por isso; a felicidade que conquistou tem ainda maior valor para ele. A bem-aventurança suprema é a partilha apenas dos Espíritos perfeitos, ou em outras palavras, dos puros Espíritos. Eles só a atingem depois de terem progredido em inteligência e em moralidade. O progresso intelectual e o progresso moral raramente andam lado a lado; mas o que o Espírito não faz num tempo, ele o faz num outro, de modo que os dois progressos acabam por atingir o mesmo nível. É por essa razão que se veem frequentemente homens inteligentes e instruídos, muito pouco avançados moralmente, e reciprocamente.
8. A encarnação é necessária ao duplo progresso moral e intelectual do Espírito: ao progresso intelectual, pela atividade que ele é obrigado a desenvolver no trabalho; ao progresso moral, pela necessidade que os homens têm uns dos outros. A vida social é a pedra de toque das boas e das más qualidades. A bondade, a maldade, a doçura, a violência, a benevolência, a caridade, o egoísmo, a avareza, o orgulho, a humildade, a sinceridade, a franqueza, a lealdade, a má fé, a hipocrisia, numa palavra, tudo o que constitui o homem de bem ou o homem perverso tem por motor, por objetivo e por estimulante as relações do homem com seus semelhantes; para o homem que vivesse sozinho, não haveria vícios nem virtudes; se, pelo isolamento, ele se preserva do mal, anula o bem.
9. Uma única existência corporal é manifestamente insuficiente para que o Espírito possa adquirir todo o bem que lhe falta e desfazer-se de tudo o que nele é mau. Poderia o selvagem, por exemplo, numa única encarnação atingir o nível moral e intelectual do europeu mais avançado? Isso é materialmente impossível. Deve ele então permanecer eternamente na ignorância e na barbárie, privado dos gozos que só o desenvolvimento das faculdades pode propiciar? O simples bom senso repele tal suposição, que seria ao mesmo tempo a negação da justiça e da bondade de Deus, e a da lei progressiva da natureza. É por isso que Deus, que é soberanamente justo e bom, concede ao Espírito do homem tantas existências quantas forem necessárias para atingir o objetivo, que é a perfeição. Em cada nova existência o Espírito traz o que adquiriu, nas precedentes, em aptidões, em conhecimentos intuitivos, em inteligência e em moralidade. Assim, cada existência é um passo adiante na via do progresso.*
A encarnação é inerente à inferioridade dos Espíritos; ela não é mais necessária para aqueles que ultrapassaram seu limite e que progridem no estado espiritual, ou nas existências corpóreas dos mundos superiores que não têm mais nada da materialidade terrestre. Da parte destes, ela é voluntária, tendo em vista exercer sobre os encarnados uma ação mais direta para o cumprimento da missão de que estão encarregados. Aceitam suas vicissitudes e sofrimentos por devotamento.
* Vede 1.ª Parte, cap. I, n.º 3, nota 1.
11. A reencarnação pode ocorrer na Terra ou em outros mundos. Entre os mundos, há os que são mais avançados do que outros, onde a existência se realiza em condições menos penosas do que na Terra, física e moralmente, mas onde são admitidos apenas Espíritos chegados a um grau de perfeição compatível com o estado desses mundos. A vida nos mundos superiores já é uma recompensa, pois lá se está isento dos males e das vicissitudes dos quais se é alvo na Terra. Os corpos, menos materiais, quase fluídicos, não estão sujeitos às doenças, nem às enfermidades, nem às mesmas necessidades. Estando os maus Espíritos dali excluídos, os homens vivem em paz, sem outro cuidado senão o de seu avanço pelo trabalho da inteligência. Lá reinam a verdadeira fraternidade, porque não há egoísmo; a verdadeira igualdade, porque não há orgulho; a verdadeira liberdade, porque não há desordens a reprimir, nem ambiciosos tentando oprimir o fraco. Comparados à Terra, esses mundos são verdadeiros paraísos; são as etapas do caminho do progresso que conduz ao estado definitivo. Sendo a Terra um mundo inferior destinado à depuração dos Espíritos imperfeitos, é por essa razão que o mal aí domina até que Deus queira fazer dela a morada de Espíritos mais avançados. É assim que o Espírito, progredindo gradualmente à medida que se desenvolve, chega ao apogeu da felicidade; mas, antes de ter atingido o ponto culminante da perfeição, ele goza de uma felicidade relativa ao seu avanço. Tal como a criança saboreia os prazeres da primeira infância, mais tarde, os da juventude, e finalmente os mais sólidos da idade madura.
13. As atribuições dos Espíritos são proporcionais ao seu avanço, às luzes que possuem, a suas capacidades, à sua experiência e ao grau de confiança que inspiram ao soberano Senhor. Não há privilégio, não há favores que não sejam o prêmio do mérito: tudo é avaliado pela estrita justiça. As missões mais importantes são confiadas somente àqueles que se sabe serem capazes de realizá-las e incapazes de falhar ou de comprometê-las. Enquanto sob o olhar do próprio Deus, os mais dignos compõem o conselho supremo, a chefes superiores é entregue a direção dos turbilhões planetários; a outros é conferida a dos mundos especiais. Vêm a seguir, na ordem do adiantamento e da subordinação hierárquica, as atribuições mais restritas daqueles que são encarregados da marcha dos povos, da proteção das famílias e dos indivíduos, da impulsão de cada ramo do progresso, das diversas operações da natureza até os mais ínfimos detalhes da criação. Neste vasto e harmonioso conjunto, há ocupação para todas as capacidades, todas as aptidões, todas as boas vontades, ocupações aceitas com alegria, solicitadas com ardor, porque é um meio de progresso para os Espíritos que procuram elevar-se.
14. Ao lado das grandes missões confiadas aos Espíritos superiores, há as de todos os graus de importância entregues aos Espíritos de todas as ordens; daí se poder dizer que cada encarnado tem a sua, ou seja, deveres a cumprir para o bem de seus semelhantes, desde o pai de família a quem incumbe o cuidado de fazer progredir seus filhos, até o homem de gênio que lança na sociedade novos elementos de progresso. É nessas missões secundárias que se encontram muitas vezes falhas, prevaricações, renúncias, mas que prejudicam apenas o indivíduo e não o conjunto.
15. Todas as inteligências concorrem, portanto, para a obra geral, seja qual for o grau a que tenham chegado, e cada uma na medida das suas forças; umas no estado de encarnação, outras no estado de Espírito. Em toda parte a atividade, do ponto mais baixo até o mais alto da escala, todas se instruindo, se ajudando mutuamente, estendendo a mão umas às outras para atingir o cume. Assim se estabelece a solidariedade entre o mundo espiritual e o mundo corporal, em outras palavras, entre os homens e os Espíritos, entre os Espíritos livres e os Espíritos cativos. Assim se perpetuam e se consolidam, pela purificação e continuidade das relações, as simpatias verdadeiras, as afeições santas. Em toda a parte, portanto, a vida e o movimento; nenhum canto do infinito que não seja povoado; nenhuma região que não seja incessantemente percorrida por inúmeras legiões de seres radiosos, invisíveis para os sentidos grosseiros dos encarnados, mas cuja visão arrebata de admiração e de alegria as almas desprendidas da matéria. Em toda a parte, enfim, há uma felicidade relativa para todos os progressos, para todos os deveres cumpridos; cada um traz em si os elementos de sua felicidade, relativa à categoria em que o coloca seu grau de adiantamento. A felicidade deve-se às qualidades próprias dos indivíduos, e não ao estado material do meio onde eles se encontram; ela existe então em toda parte onde haja Espíritos capazes de ser felizes; nenhum lugar circunscrito lhe é designado no universo. Seja qual for o lugar onde se encontrem, os puros Espíritos podem contemplar a majestade divina, porque Deus está em toda a parte.
16. Entretanto, a felicidade não é pessoal; se fosse tirada apenas de si mesmo, se não se pudesse compartilhá-la com outros, seria egoísta e triste; ela está também na comunhão de pensamentos que une os seres simpáticos. Os Espíritos bem-aventurados, atraídos uns para os outros pela semelhança das ideias, dos gostos, dos sentimentos, formam vastos grupos ou famílias homogêneas, nas quais cada individualidade irradia suas próprias qualidades, e é penetrada pelos eflúvios serenos e benfazejos que emanam do conjunto, cujos membros ora se dispersam para se dedicarem à sua missão, ora se juntam num ponto qualquer do espaço para comunicarem uns aos outros o resultado de seus trabalhos, ora se reúnem em volta de um Espírito de uma ordem mais elevada para receber seus conselhos e suas instruções.
17. Embora os Espíritos estejam em toda parte, os mundos são os centros onde eles se reúnem de preferência, devido à analogia que existe entre eles e aqueles que os habitam. Em torno dos mundos avançados são abundantes os Espíritos superiores; em torno dos mundos atrasados pululam os Espíritos inferiores. A Terra é ainda um destes últimos. Cada globo tem então, de alguma forma, sua própria população de Espíritos encarnados e desencarnados, a qual se alimenta na maior parte pela encarnação e desencarnação dos mesmos Espíritos. Essa população é mais estável nos mundos inferiores onde os Espíritos são mais apegados à matéria, e mais flutuante nos mundos superiores. Entretanto, dos mundos, centros de luz e de felicidade, Espíritos se desprendem rumo aos mundos inferiores para semear neles os germes do progresso, trazer a consolação e a esperança, reanimar as coragens abatidas pelas provações da vida, e às vezes encarnam-se neles para cumprirem sua missão com mais eficácia.
18. Nesta imensidão sem limites, onde está então o céu? Está em toda a parte; nenhuma cerca lhe impõe limites; os mundos felizes são as últimas estações que a ele conduzem; as virtudes abrem-lhe o caminho, os vícios proíbem-lhe o acesso. Ao lado deste quadro grandioso que povoa todos os cantos do universo, que dá a todos os objetos da criação um objetivo e uma razão de ser, como é pequena e mesquinha a doutrina que circunscreve a humanidade a um imperceptível ponto do espaço, que no-la mostra começando num dado instante para acabar igualmente um dia com o mundo que a sustenta, não abarcando assim senão um minuto na eternidade! Como ela é triste, fria e glacial, quando nos mostra o resto do universo antes, durante e depois da humanidade terrestre, sem vida, sem movimento, como um imenso deserto mergulhado no silêncio! Como é desesperante pela pintura que faz do pequeno número de eleitos devotados à contemplação eterna, enquanto a maioria das criaturas é condenada a sofrimentos sem fim! Como ela é aflitiva, para os corações amantes, pela barreira que coloca entre os mortos e os vivos! As almas felizes, diz-se, pensam somente em sua felicidade; as que são desgraçadas, em suas dores. É de espantar que o egoísmo reine na Terra, quando é mostrado no céu? Quão estreita é então a ideia que ela dá da grandeza, do poder e da bondade de Deus! Quão sublime é, ao contrário, a ideia que o Espiritismo dá! Como sua doutrina engrandece as ideias, amplia o pensamento! — Mas quem diz que ela é verdadeira? Inicialmente a razão, a revelação em seguida, depois sua concordância com o progresso da ciência. Entre duas doutrinas das quais uma diminui e a outra amplia os atributos de Deus; das quais uma está em desacordo e a outra em harmonia com o progresso; das quais uma fica para trás e a outra avança, o bom senso diz de que lado está a verdade. Que em presença das duas, cada um, em seu foro íntimo, interrogue suas aspirações, e uma voz interna lhe responderá. As aspirações são a voz de Deus, que não pode enganar os homens.
19. Mas então por que Deus, desde o princípio, não lhes revelou toda a verdade? Pela mesma razão de que não se ensina à infância o que se ensina à idade madura. A revelação restrita era suficiente durante um certo período da humanidade; Deus a proporciona às forças do Espírito. Aqueles que hoje recebem uma revelação mais completa são os mesmos Espíritos que já receberam uma revelação parcial em outros tempos, mas que desde então cresceram em inteligência. Antes que a ciência lhes tivesse revelado as forças vivas da natureza, a constituição dos astros, o verdadeiro papel e a formação da Terra, teriam eles compreendido a imensidão do espaço, a pluralidade dos mundos? Antes que a geologia tivesse provado a formação da Terra, teriam eles podido desalojar o inferno de seu centro, e compreender o sentido alegórico dos seis dias da criação? Antes que a astronomia tivesse descoberto as leis que regem o universo, teriam eles podido compreender que não há nem acima nem abaixo no espaço, que o céu não está acima das nuvens, nem limitado pelas estrelas? Antes do progresso da ciência psicológica teriam eles podido identificar-se com a vida espiritual? Conceber, após a morte, uma vida feliz ou infeliz, de outro modo que não num lugar circunscrito e sob uma forma material? Não; compreendendo mais pelos sentidos do que pelo pensamento, o universo era demasiado vasto para seu cérebro; era preciso reduzi-lo a proporções menores para colocá-lo sob seu ponto de vista, sob a condição de estendê-lo mais tarde. Uma revelação parcial tinha sua utilidade; ela era sábia então, hoje é insuficiente. O erro é daqueles que, não levando em conta o progresso das ideias, creem poder governar homens maduros como se fossem crianças. (Ver Evangelho segundo o Espiritismo , cap. III.)
Capítulo IV — O inferno
Intuição das penas futuras.
1. Em todos os tempos o homem acreditou, por intuição, que a vida futura devia ser bem-aventurada ou desventurada em razão do bem e do mal que se realiza aqui embaixo; porém a ideia que ele faz dessa vida futura está em relação com o desenvolvimento de seu senso moral, e as noções mais ou menos exatas que possui do bem e do mal; penas e recompensas são reflexo de seus instintos predominantes. É assim que os povos guerreiros colocam sua suprema felicidade nas honrarias prestadas à bravura, os povos caçadores na abundância da caça, os povos sensuais nas delícias da volúpia. Enquanto o homem for dominado pela matéria, pode só imperfeitamente compreender a espiritualidade, é por isso que faz das penas e dos gozos futuros um quadro mais material que espiritual; imagina que se deve beber e comer no outro mundo, mas melhor do que na terra, e coisas melhores.* Chegado a certo nível, há nas crenças referentes ao futuro uma mistura de espiritualidade e de materialidade; é assim que ao lado da beatitude contemplativa, ele coloca um inferno com torturas físicas.
* Um garoto saboiano, ao qual o padre pintava um quadro sedutor da vida futura, perguntou-lhe se lá todo o mundo comia pão branco como em Paris.
2. Não podendo o homem primitivo conceber senão o que vê, calcou naturalmente seu futuro sobre o presente; para compreender outros tipos além dos que tinha à vista, precisava de um desenvolvimento intelectual que só devia se realizar com o tempo. Também o quadro que ele imagina dos castigos da vida futura é apenas o reflexo dos males da humanidade, mas em mais ampla proporção; reuniu ali todas as torturas, todos os suplícios, todas as aflições que encontra na Terra; é assim que, nos climas ardentes, ele imaginou um inferno de fogo, e nas regiões boreais um inferno glacial. Não estando ainda desenvolvido o sentido que devia mais tarde lhe fazer compreender o mundo espiritual, ele podia conceber somente penas materiais; por isso, com pequenas diferenças de forma, o inferno de todas as religiões se assemelha.
Inferno cristão imitado do inferno pagão.
3. O inferno dos pagãos, descrito e dramatizado pelos poetas, foi o modelo mais grandioso do gênero; perpetuou-se no dos cristãos o qual teve, também, seus panegiristas poéticos. Comparando-os, encontram-se neles, exceto os nomes e algumas variantes nos detalhes, inúmeras analogias; num e noutro o fogo material é a base dos tormentos, porque é o símbolo dos mais cruéis sofrimentos. Mas, coisa estranha, os cristãos, em muitos pontos, exageraram o inferno dos pagãos! Se estes últimos tinham no deles o tonel das Danaides, a roda de Íxion, o rochedo de Sísifo, eram suplícios individuais; o inferno cristão tem para todos caldeiras borbulhantes cujas tampas os anjos levantam para ver as contorções dos condenados às penas eternas;* Deus ouve sem compaixão os gemidos destes durante a eternidade. Jamais os pagãos descreveram os habitantes dos Campos Elíseos saciando a vista com os suplícios do Tártaro.**
* Sermão pregado em Montpellier em 1860.
** “Os bem-aventurados, sem sair do lugar que ocupam, sairão, entretanto, de uma certa maneira, em razão de seus dons de inteligência e de suas visões distintas, a fim de considerar as torturas dos danados; e, vendo-os, não somente não sentirão nenhuma dor, mas estarão cumulados de alegria, e renderão graças a Deus pela própria felicidade, assistindo à inefável calamidade dos ímpios” (Santo Tomás de Aquino.)
4. Como os pagãos, os cristãos têm seu rei dos infernos que é Satã, com a diferença de que Plutão se limitava a governar o sombrio império que lhe tocara na partilha, mas não era malvado; retinha em sua casa aqueles que haviam cometido o mal, porque essa era sua missão, mas não procurava induzir os homens ao mal para ter o prazer de fazê-los sofrer, ao passo que Satã recruta em toda a parte vítimas que se compraz em fazer atormentar pelas suas legiões de demônios armados de forcados para as agitar no fogo. Discutiu-se mesmo seriamente sobre a natureza desse fogo que queima incessantemente os condenados sem jamais os consumir; perguntou-se se era um fogo de betume.* O inferno cristão não fica, portanto, a dever nada ao inferno pagão.
* Sermão pregado em Paris em 1861.
5. As mesmas considerações que, entre os Antigos, haviam feito localizar a morada da felicidade, haviam também feito circunscrever o lugar dos suplícios. Tendo os homens colocado a primeira nas regiões superiores, era natural colocar o segundo nos lugares inferiores, ou seja, no centro da Terra ao qual certas cavidades sombrias e de aspecto terrível serviam de entrada. Foi também lá que os cristãos colocaram por muito tempo a morada dos reprovados. Notemos ainda sobre este assunto outra analogia. O inferno dos pagãos encerrava de um lado os Campos Elíseos e do outro o Tártaro; o Olimpo, morada dos deuses e dos homens divinizados, ficava nas regiões superiores. Segundo a carta do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, ou seja, aos lugares baixos, para daí tirar as almas dos justos que aguardavam sua vinda. Os infernos não eram, então, unicamente um lugar de suplício; como entre os pagãos, eles estavam também nos lugares baixos. Assim como o Olimpo, a morada dos anjos e dos santos era nos lugares elevados; colocaram-no além do céu das estrelas que se acreditava limitado.
7. Pela localização do céu e do inferno, as religiões cristãs foram levadas a admitir para as almas apenas duas situações extremas: a felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O purgatório não é mais do que uma posição intermediária momentânea à saída da qual elas passam sem transição à morada dos bem-aventurados. Não poderia ser de outra forma segundo a crença na determinação definitiva do destino da alma depois da morte. Se não há senão duas moradas, a dos eleitos e a dos reprovados, não se podem admitir vários graus em cada uma sem admitir a possibilidade de galgá-los, e, por conseguinte o progresso; ora, se há progresso, não há destino definitivo; se há destino definitivo, não há progresso. Jesus resolve a questão quando diz: “Há muitas moradas na casa de meu pai .” *
* Vede o Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.
Os limbos.
8. A Igreja admite, é verdade, uma posição especial em certos casos particulares. As crianças mortas em tenra idade, não tendo feito nenhum mal, não podem ser condenadas ao fogo eterno; por outro lado, não tendo feito nenhum bem, não têm nenhum direito à felicidade suprema. Ficam então, diz ela, no limbo, situação mista que jamais foi definida, na qual, não sofrendo, também não gozam da perfeita felicidade. Mas visto que seu destino está irrevogavelmente determinado, elas estão privadas dessa felicidade por toda a eternidade. Essa privação, embora não tenha dependido delas que fosse de outra maneira, equivale a um suplício eterno imerecido. Acontece o mesmo com os selvagens que, não tendo recebido a graça do batismo e as luzes da religião, pecam por ignorância, abandonando-se aos instintos naturais, não podem ter nem a culpa nem os méritos dos que puderam trabalhar com conhecimento de causa para seu avanço. A simples lógica repele semelhante doutrina em nome da justiça de Deus. A justiça de Deus está toda nesta expressão de Cristo: “A cada um segundo suas obras”; mas é preciso entender que se refere às obras boas ou más que se realizam livremente, voluntariamente, as únicas em cuja responsabilidade se incorre, o que não é o caso da criança, nem do selvagem, nem daquele do qual não dependeu ser esclarecido.
Quadro do inferno pagão.
9. Só conhecemos o inferno pagão pela narrativa dos poetas; Homero e Virgílio fizeram dele a mais completa descrição, mas é preciso levar em conta os limites que a poesia impõe à forma. A de Fénelon, em seu Telêmaco, embora extraída da mesma fonte quanto às crenças fundamentais, tem a simplicidade mais precisa da prosa. Descrevendo o aspecto lúgubre dos lugares, ressalta acima de tudo o gênero de sofrimentos infligidos aos culpados, e se estende muito sobre o destino dos maus reis, tendo em vista a instrução de seu real aluno. Por mais popular que seja sua obra, talvez muitas pessoas não se lembrem dela, ou não tenham refletido o suficiente sobre ela para estabelecer uma comparação; é por isso que cremos útil reproduzir aqui as partes que têm uma relação mais direta com o assunto que nos ocupa, ou seja, aquelas que se referem mais precisamente à penalidade individual.
10. “Ao entrar, Telêmaco ouve os gemidos de uma sombra que não podia consolar-se. Qual é então, disse-lhe ele, vossa desgraça? Eu era, responde-lhe a sombra, Nabofarzan, rei da soberba Babilônia; todos os povos do Oriente tremiam ao simples som do meu nome; fazia-me adorar pelos babilônios num templo de mármore onde era representado por uma estátua de ouro diante da qual ardiam dia e noite os mais preciosos perfumes da Etiópia; jamais alguém ousou contradizer-me sem ser logo punido; inventavam-se todo dia novos prazeres para tornar minha vida mais deliciosa. Eu era então jovem e robusto; ah! quantos dias afortunados tinha ainda a gozar no trono! Mas uma mulher que eu amava, e que não me amava, fez-me sentir que eu não era deus: ela me envenenou; não sou mais nada. Puseram ontem com pompa minhas cinzas numa urna de ouro; choraram, arrancaram os cabelos; fingiram querer jogar-se nas chamas de minha fogueira para morrer comigo; vão ainda gemer ao pé do soberbo túmulo onde puseram minhas cinzas: mas ninguém me lamenta, minha memória é odiada mesmo na minha família, e aqui embaixo já estou sofrendo horríveis tratamentos.
“Telêmaco, tocado por esse espetáculo, disse-lhe: Éreis verdadeiramente feliz durante vosso reinado? Sentíeis aquela doce paz sem a qual o coração permanece sempre apertado e ressequido em meio às delícias? Não, respondeu o babilônio; nem mesmo sei o que quereis dizer. Os sábios elogiam essa paz como o único bem: por mim, nunca a senti; meu coração era incessantemente agitado por desejos novos, temor e esperança. Eu tentava atordoar-me pela excitação de minhas paixões; tinha o cuidado de manter essa embriaguez para torná-la contínua; o menor intervalo de sensatez teria sido demasiado amargo. Eis a paz de que gozei; qualquer outra me parece uma fábula e um sonho; eis os bens que lamento.
“Falando assim, o babilônio chorava como um homem covarde que foi amolecido pela fortuna e não está acostumado a suportar constantemente a desgraça. Tinha perto dele alguns escravos que haviam sido sacrificados em sua homenagem no funeral; Mercúrio entregara-os a Caronte com seu rei, e dera-lhes poder absoluto sobre esse rei que haviam servido na terra. Essas sombras de escravos não mais temiam a sombra de Nabofarzan; elas a mantinham acorrentada e faziam-lhe as mais cruéis afrontas. Uma dizia-lhe: Nós não éramos homens como tu? Como podias ser tão insensato a ponto de te creres um deus? E não devias lembrar-te de que eras da raça dos outros homens? Outra, para insultá-lo, dizia: Tinhas razão de não querer que te tomassem por um homem, pois eras um monstro sem humanidade. Uma outra dizia-lhe: Pois bem! Onde estão agora os teus aduladores? Não tens mais nada para dar, desgraçado! Não podes fazer mais nenhum mal; és agora escravo dos teus próprios escravos: os deuses são lentos para fazer justiça, mas enfim a fazem.
“A essas duras palavras, Nabofarzan se jogava de rosto no chão, arrancando os cabelos num ataque de raiva e desespero. Mas Caronte dizia aos escravos: Puxai-o pela corrente; levantai-o à força, ele não terá nem mesmo o consolo de esconder sua vergonha; é preciso que todas as sombras do Estige sejam testemunhas para justificar os deuses, que aguentaram tanto tempo que este ímpio reinasse na Terra.
“Ele logo percebe, bem perto dele, o negro Tártaro; dali saía uma fumaça negra e espessa, cujo cheiro pestilento causaria a morte se ele se espalhasse pela morada dos vivos. Essa fumaça cobria um rio de fogo e turbilhões de chamas, cujo estrépito, semelhante ao das torrentes mais impetuosas quando se lançam dos mais altos rochedos no fundo dos abismos, fazia que nada se pudesse ouvir distintamente naqueles tristes lugares.
“Telêmaco, secretamente animado por Minerva, entra sem temor nesse abismo. Primeiro percebeu muitos homens que viveram nas mais baixas condições, e que eram punidos por terem buscado riquezas por meio de fraudes, traições e crueldades. Notou ali muitos ímpios hipócritas que, fingindo amar a religião, tinham-na usado como um belo pretexto para satisfazerem sua ambição e enganarem os homens crédulos: esses homens, que haviam abusado da própria virtude, embora ela seja o maior dom dos deuses, eram punidos como os mais celerados de todos os homens. Os filhos que assassinaram pais e mães, as esposas que sujaram as mãos no sangue dos esposos, os traidores que entregaram a pátria depois de terem violado todos os juramentos, sofriam penas menos cruéis do que esses hipócritas. Os três juízes dos infernos tinham-no desejado assim, e eis sua razão: esses hipócritas não se contentam com a maldade como o resto dos ímpios; querem ainda passar por bons e fazem, por sua falsa virtude, que os homens não ousem mais confiar na verdadeira virtude. Os deuses, com os quais eles brincaram e tornaram desprezíveis para os homens, aprazem-se em empregar todo o seu poder para se vingarem de seus insultos.
“Perto destes apareciam outros homens que o vulgo não crê muito culpados, e que a vingança divina persegue implacavelmente; são os ingratos, os mentirosos, os aduladores que elogiaram o vício, os críticos maliciosos que tentaram aviltar a mais pura virtude; enfim, aqueles que temerariamente julgaram coisas sem conhecê-las a fundo, e com isso prejudicaram a reputação dos inocentes.
“Telêmaco, vendo os três juízes que estavam sentados e que condenavam um homem, ousou perguntar-lhes quais eram seus crimes. Imediatamente o condenado, tomando a palavra, exclamou: Nunca fiz nenhum mal; tive todo o prazer em fazer o bem; fui magnífico, liberal, justo, compassivo; o que se pode, portanto, reprovar-me? Então Minos disse-lhe: Não te reprovamos nada em relação aos homens; mas tu não devias menos aos homens do que aos deuses? Qual é então essa justiça de que te gabas? Não faltaste a nenhum dever para com os homens, que não são nada; foste virtuoso, mas dirigiste toda a tua virtude a ti mesmo, e não aos deuses, que te deram-na, pois querias gozar do fruto da tua própria virtude e fechar-te em ti mesmo: foste a tua divindade. Mas os deuses, que fizeram tudo, e que não fizeram nada a não ser por eles mesmos, não podem renunciar a seus direitos; tu os esqueceste, eles te esquecerão; entregar-te-ão a ti mesmo, visto que quiseste ser teu e não deles. Busca agora então, se puderes, a consolação em teu próprio coração. Eis-te separado para sempre dos homens aos quais quiseste agradar; eis-te só contigo mesmo, que eras teu ídolo: aprende que não há verdadeira virtude sem o respeito e o amor aos deuses, aos quais tudo é devido. Tua falsa virtude, que seduziu por muito tempo os homens fáceis de enganar, vai ser desmascarada.Os homens, julgando vícios e virtudes apenas pelo que os choca ou lhes convém, são cegos sobre o bem e sobre o mal. Aqui, uma luz divina inverte todos os seus julgamentos superficiais; ela condena com frequência o que eles admiram e justifica o que eles condenam.
“A essas palavras, esse filósofo, como que atingido por um raio, não podia suportar a si mesmo. A complacência que tivera outrora ao contemplar sua moderação, sua coragem e suas inclinações generosas, torna-se desespero. A visão de seu próprio coração, inimigo dos deuses, torna-se seu suplício; ele se vê e não pode cessar de se ver; vê a vaidade dos julgamentos dos homens, aos quais quis agradar em todas as suas ações. Ocorre uma revolução universal em todo o seu interior, como se suas entranhas fossem reviradas; ele não se reconhece mais; falta-lhe todo o apoio de seu coração; sua consciência, cujo testemunho lhe fora tão doce, se ergue contra ele e reprova-lhe amargamente o desvario e a ilusão de todas as suas virtudes, que não tiveram o culto da divindade por princípio e por fim: ele está perturbado, consternado, cheio de vergonha, de remorsos e de desespero. As fúrias não o atormentam, porque lhes basta tê-lo entregado a si mesmo, e que seu próprio coração vingue os deuses menosprezados. Não podendo se esconder de si mesmo, ele procura os lugares mais escuros para se esconder dos outros mortos. Procura as trevas e não pode encontrá-las; uma luz importuna o segue por toda a parte; em toda a parte os raios penetrantes da verdade vão vingar a verdade que ele negligenciou seguir. Tudo o que amou se torna odioso, como sendo a fonte de seus males, que jamais podem acabar. Diz a si mesmo: Ó insensato! Então não conheci nem os deuses, nem os homens, nem a mim mesmo! Não, não conheci nada, visto que jamais amei o único e verdadeiro bem; todos os meus passos foram desvarios; minha sabedoria não era senão loucura; minha virtude era apenas um orgulho ímpio e cego: eu era meu próprio ídolo.
“Enfim Telêmaco avistou os reis que eram condenados por terem abusado de seu poder. De um lado uma fúria vingadora apresentava-lhes um espelho que lhes mostrava toda a deformidade de seus vícios: ali eles viam e não podiam deixar de ver sua vaidade grosseira e ávida das mais ridículas lisonjas; sua dureza para com os homens, cuja felicidade deveriam ter assegurado; sua insensibilidade para com a virtude; seu temor de ouvir a verdade; sua inclinação para os homens covardes e aduladores; sua falta de aplicação; sua moleza; sua indolência; sua desconfiança descabida; seu fausto e excessiva magnificência baseada na ruína dos povos; sua ambição de comprar um pouco de glória vã com o sangue de seus cidadãos; enfim sua crueldade, que procura a cada dia novas delícias em meio às lágrimas e ao desespero de tantos infelizes. Eles viam-se sem cessar nesse espelho; achavam-se mais horríveis e mais monstruosos do que a Quimera, vencida por Belerofonte, a Hidra de Lerna abatida por Hércules, ou mesmo Cérbero, embora vomite pelas três goelas escancaradas um sangue negro e venenoso que é capaz de empestar toda a raça dos mortais que vivem na terra.
“Ao mesmo tempo, de outro lado, outra fúria lhes repetia com insulto todas as lisonjas que seus aduladores lhes haviam feito durante a vida, e apresentava-lhes outro espelho, no qual eles se viam tais como a lisonja os retratara. A oposição dessas duas pinturas tão contrárias era o suplício de sua vaidade. Notava-se que os mais malvados desses reis eram aqueles a quem se fizeram as lisonjas mais magníficas durante a vida, porque os malvados são mais temidos do que os bons, e eles exigem sem pudor as covardes lisonjas dos poetas e dos oradores de seu tempo.
“Ouvem-se-nos gemer nessas profundas trevas, onde podem ver somente os insultos e os escárnios que têm de aguentar. Não têm à sua volta nada que não os repila, não os contradiga, que não os confunda; ao passo que na terra não davam importância à vida dos homens, e pretendiam que tudo era feito para servi-los. No Tártaro eles são entregues a todos os caprichos de alguns escravos que lhes fazem sentir por sua vez uma cruel servidão: eles servem com dor, e não lhes resta nenhuma esperança de poder jamais abrandar o cativeiro; apanham desses escravos, que se tornaram seus tiranos implacáveis, como uma bigorna apara os golpes dos martelos dos Ciclopes, quando Vulcano os força a trabalhar nas fornalhas ardentes do monte Etna.
“Ali Telêmaco avistou rostos pálidos, hediondos e consternados. É uma tristeza negra que rói esses criminosos; têm horror de si mesmos, e não podem libertar-se desse horror tal como de sua própria natureza; não precisam de outro castigo que o de suas faltas, suas próprias faltas: veem-nas sem cessar em toda sua enormidade; elas se lhes apresentam como espectros horríveis, perseguem-nos. Para se proteger, eles procuram uma morte mais poderosa do que aquela que os separou de seus corpos. No desespero em que se encontram, pedem socorro a uma morte que possa extinguir neles todo sentimento e todo conhecimento; pedem aos abismos para que os engulam a fim de se livrarem dos raios vingadores da verdade que os persegue, mas estão reservados à vingança que destila sobre eles gota a gota, e que não se esgotará jamais. A verdade, que eles temeram ver, faz seu suplício; eles a veem, têm olhos apenas para vê-la erguer-se contra eles: sua visão transpassa-os, dilacera-os, arrancaos a si mesmos; ela é como o raio; sem destruir nada por fora, penetra até o fundo das entranhas.
“Entre esses objetos que faziam os cabelos de Telêmaco ficar em pé, ele viu vários dos antigos reis da Lídia que eram punidos por terem preferido as delícias de uma vida fácil ao trabalho, para o alívio dos povos, que deve ser inseparável da realeza.
“Esses reis acusavam-se mutuamente de cegueira. Um dizia ao outro, que fora seu filho: Não vos recomendara eu muitas vezes, durante minha velhice e antes de morrer, reparardes os males que eu fizera por negligência? Ah! Pai desgraçado! dizia o filho, fostes vós que me perdestes! Foi vosso exemplo que me inspirou o fausto, o orgulho, a volúpia e a dureza para com os homens! Vendo-vos reinar com tanta frouxidão e cercado de covardes aduladores, acostumei-me a gostar da adulação e dos prazeres. Acreditei que o resto dos homens era, em relação aos reis, o que os cavalos e as outras bestas de carga são em relação aos homens, ou seja, animais dos quais não se faz caso a não ser enquanto prestam serviços e dão comodidades. Eu acreditei, sois vós que me fizestes crer nisso; e agora sofro tantos males por vos ter imitado. A essas acusações acrescentavam as mais horrorosas maldições, e pareciam tomados de raiva para se dilacerarem mutuamente.
“Em torno desses reis esvoaçavam ainda, como corujas à noite, as cruéis suspeitas, os vãos alarmes, as desconfianças que vingam os povos da dureza de seus reis, a fome insaciável de riquezas, a falsa glória sempre tirânica e a frouxidão covarde que redobra todos os males de que se sofre, sem nunca poder dar prazeres sólidos.
“Viam-se vários desses reis severamente punidos, não pelos males que fizeram, mas por terem negligenciado o bem que deveriam ter feito. Todos os crimes dos povos, que vêm da negligência com a qual se fazem observar as leis, eram imputados aos reis, que devem reinar apenas a fim de que as leis reinem por seu ministério. Imputavam-se-lhes também todas as desordens que vêm do fausto, do luxo e de todos os outros excessos que jogam os homens num estado violento e na tentação de desprezar as leis para adquirir bens. Sobretudo tratavam-se rigorosamente os reis que, em vez de serem bons e vigilantes pastores do povo, só pensaram em devastar o rebanho, como lobos devoradores.
“Mas o que mais consternou Telêmaco foi ver, nesse abismo de trevas e de males, um grande número de reis que, tendo passado na terra por reis bastante bons, foram condenados às penas do Tártaro por se terem deixado governar por homens maus e artificiosos. Eram punidos pelos males que deixaram fazer por sua autoridade. Ademais, a maioria desses reis não fora nem boa nem má, tão grande fora sua fraqueza; jamais temeram não conhecer a verdade; não tiveram gosto pela virtude, e não tiveram o prazer de fazer o bem.”
Quadro do inferno cristão.
* Estas citações são tiradas da obra intitulada: O Inferno, por Auguste Callet.
12. “Os demônios são puros Espíritos, e os condenados, presentemente no inferno, podem também ser considerados como puros Espíritos, visto que só sua alma aí desceu, e que suas ossadas entregues ao pó se transformam incessantemente em ervas, em plantas, em frutos, em minerais, em líquidos, sofrendo, sem saber, as contínuas metamorfoses da matéria. Mas os condenados, como os santos, devem ressuscitar no último dia, e retomar, para não mais o deixar, um corpo carnal, o mesmo corpo sob o qual foram conhecidos entre os vivos. O que os distinguirá uns dos outros é que os eleitos ressuscitarão num corpo purificado e todo radioso, os condenados num corpo maculado e deformado pelo pecado. Portanto, não haverá mais no inferno somente puros Espíritos; haverá homens como nós. O inferno é, por conseguinte, um lugar físico, geográfico, material, visto que será povoado de criaturas terrestres, tendo pés, mãos, boca, língua, dentes, orelhas, olhos semelhantes aos nossos, e sangue nas veias, e nervos sensíveis à dor.
Onde está situado o inferno? Alguns doutores colocaram-no nas entranhas mesmas da nossa terra; outros, em não sei qual planeta; mas a questão não foi decidida por nenhum concílio. Está-se, portanto, sobre este ponto, reduzido às conjeturas; a única coisa que se afirma, é que o inferno, seja qual for o lugar em que estiver situado, é um mundo composto de elementos materiais, mas um mundo sem sol, sem lua, sem estrelas, mais triste, mais inóspito, mais desprovido de todo germe e de toda aparência de bem do que as partes mais inabitáveis deste mundo onde pecamos.
“Os teólogos circunspectos não se arriscam a pintar, à maneira dos egípcios, dos hindus e dos gregos, todos os horrores dessa morada; eles se limitam a mostrar-nos dela, como uma amostra, o pouco que a Escritura desvela, a lagoa de fogo e de enxofre do apocalipse, e os vermes de Isaías, esses vermes eternamente pululando sobre as carcaças do Thophel, e os demônios atormentando os homens que perderam, e os homens chorando e rangendo os dentes, segundo a expressão dos Evangelistas.
“Santo Agostinho não concorda que essas penas físicas sejam simples imagens das penas morais; ele vê, numa verdadeira lagoa de enxofre, vermes e serpentes verdadeiros encarniçando-se sobre todas as partes do corpo dos condenados e juntando suas mordidas às do fogo. Ele pretende, segundo um versículo de São Marcos, que esse fogo estranho, embora material como o nosso, e agindo sobre corpos materiais, conservá-los-á como o sal conserva a carne das vítimas. Mas os condenados eternos, vítimas sempre sacrificadas e sempre vivas, sentirão a dor desse fogo que queima sem destruir; ele penetrará sob sua pele; eles ficarão embebidos dele e saturados em todos os membros, e na medula dos seus ossos, e na pupila dos seus olhos, e nas fibras mais recônditas e mais sensíveis de seu ser. A cratera de um vulcão, se pudessem nela mergulhar, seria para eles um lugar de refrigério e de repouso.
“Assim falam, com toda a segurança, os teólogos mais tímidos, mais discretos, mais reservados; não negam, aliás, que haja no inferno outros suplícios corporais; dizem somente que, para falar disso, não têm um conhecimento suficiente, tão positivo, ao menos, do que o que lhes foi dado do horrível suplício do fogo e do nojento suplício dos vermes. Mas há teólogos mais arrojados ou mais esclarecidos que fazem do inferno descrições mais detalhadas, mais variadas e mais completas; e, ainda que não se saiba em que lugar do espaço esse inferno está situado, há santos que o viram. Não foram de lira em punho, como Orfeu, ou de espada em punho, como Ulisses; foram lá transportados em Espírito. Santa Teresa é desse número.
“Pareceria, segundo o relato da santa, que há cidades no inferno; ela viu ali, pelo menos, uma espécie de ruela longa e estreita, como há tantas nas velhas cidades; ela entrou lá, andando com horror num terreno lamacento, fétido, onde pululavam monstruosos répteis; mas foi detida em sua marcha por uma muralha que barrava a ruela; nessa muralha havia um nicho onde Teresa se enfiou, sem nem saber como isso aconteceu. Era, disse ela, o lugar que lhe estava destinado, se abusasse, em vida, das graças que Deus espalhava sobre sua cela de Ávila. Embora se tivesse introduzido com maravilhosa facilidade nesse nicho de pedra, não podia, no entanto, nem sentar-se, nem deitar-se, nem ficar de pé: nem tampouco podia sair dali; essas horríveis muralhas, tendo-se abaixado sobre ela, envolviam-na, apertavam-na, como se fossem animadas. Pareceu-lhe que a asfixiavam, a estrangulavam, e, ao mesmo tempo, que a esfolavam viva e a retalhavam. E ela sentia-se queimar, e experimentava simultaneamente todos os gêneros de angústias. Nenhuma esperança de socorro; à sua volta, apenas trevas, e, no entanto, através dessas trevas, ela distinguia ainda, não sem espanto, a hedionda rua onde estava enfiada e toda sua vizinhança imunda, espetáculo para ela tão intolerável quanto os apertos de sua prisão.*
“Não era sem dúvida senão um cantinho do inferno. Outros viajantes espirituais foram mais favorecidos. Viram no inferno grandes cidades em fogo, Babilônia e Nínive, mesmo Roma, seus palácios e templos incendiados, e todos os habitantes acorrentados, o traficante ao seu balcão, padres reunidos com cortesãos em salas de festins, e urrando em seus assentos dos quais não se podiam mais arrancar, e levando aos lábios, para matar a sede, taças de onde saíam chamas; criados de joelhos, dentro de cloacas ferventes, de braços estendidos, e príncipes de cuja mão escorria sobre eles, em lava devorante, ouro fundido. Outros viram no inferno planícies sem limites que camponeses famélicos cavavam e semeavam, e como dessas planícies fumegantes de seu suor, e dessas semeaduras estéreis, nada nascia, esses camponeses se entre devoravam; depois disso, tão numerosos quanto antes, tão magros, tão esfomeados, dispersavam-se em bandos até o horizonte, indo buscar ao longe, mas em vão, terras mais aventuradas, e logo eram substituídos, nos campos que abandonavam, por outras colônias errantes de condenados às penas eternas. Houve outros que viram no inferno montanhas cheias de precipícios, florestas gementes, poços sem água, fontes alimentadas pelas lágrimas, riachos de sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcas de desesperados vogando sobre mares sem praias. Reviu-se aí, numa palavra, tudo o que os pagãos ali viam, um reflexo lúgubre da terra, uma sombra desmedidamente aumentada de suas misérias, seus sofrimentos naturais eternizados, e até os calabouços e patíbulos, e instrumentos de tortura que nossas próprias mãos forjaram.
“Há lá em baixo, com efeito, demônios que, para melhor atormentar os homens em seus corpos, tomam corpos. Estes têm asas de morcego, chifres, couraças de escamas, patas com garras, dentes agudos; são-nos mostrados armados de gládios, de forcados, de pinças, de tenazes ardentes, de serras, de grelhas, de foles, de clavas, e fazendo, durante a eternidade, com carne humana, o ofício de cozinheiros e açougueiros; aqueles, transformados em leões ou em víboras enormes, arrastando suas presas para cavernas solitárias; alguns transformam-se em corvos, para arrancar os olhos a certos culpados, e outros em dragões voadores, para carregá-los nas costas e levá-los apavorados, sangrando, gritando através dos espaços tenebrosos, e depois deixá-los cair de novo na lagoa de enxofre. Aqui nuvens de gafanhotos, escorpiões gigantescos, cuja visão dá arrepios, cujo odor dá náuseas, cujo mínimo toque dá convulsões; lá, monstros policéfalos, abrindo de todos os lados goelas vorazes, sacudindo sobre as cabeças disformes crinas de víboras, triturando os reprovados entre as mandíbulas sangrentas, e vomitando-os todos moídos, mas vivos, porque são imortais.
“Esses demônios de forma sensível, que lembram tão nitidamente os deuses do Amenthi e do Tártaro, e os ídolos que os fenícios, os moabitas e os outros gentios vizinhos da Judeia adoravam, esses demônios não agem ao acaso; cada um tem sua função e sua obra; o mal que fazem no inferno está em relação com o mal que inspiraram e fizeram cometer na Terra.** Os condenados são punidos em todos os seus sentidos e em todos os seus órgãos, porque ofenderam Deus por todos os seus sentidos e por todos os seus órgãos; punidos de uma maneira como gulosos, pelos demônios da gula, e de outra maneira como preguiçosos, pelos demônios da preguiça, e de outra como fornicadores, pelos demônios da fornicação, e de tantas maneiras quanto há diversas maneiras de pecar. Eles terão frio queimando, e calor gelando; estarão ávidos de repouso e ávidos de movimento; e sempre esfomeados, e sempre sedentos, e mil vezes mais cansados do que o escravo no fim do dia, mais doentes do que os moribundos, mais abatidos, mais alquebrados, mais cobertos de feridas do que os mártires, e isso não acabará.
“Nenhum demônio se desanima, nem jamais se desanimará de sua horrenda tarefa; eles são todos, sob esse aspecto, bem disciplinados, e fiéis a executar as ordens de vingadores que receberam. Sem isso, o que se tornaria o inferno? Os pacientes descansariam se os carrascos acabassem por brigar ou cansar-se. Mas não há repouso para uns, nem brigas entre os outros; por mais malvados que sejam, e incontáveis, os demônios se entendem de uma ponta à outra do abismo, e nunca se viram na terra nações mais dóceis a seus príncipes, exércitos mais obedientes a seus chefes, comunidades monásticas mais humildemente submissas a seus superiores.***
“Não se conhece muito, aliás, a populaça dos demônios, esses espíritos vis dos quais são compostas as legiões de vampiros, de vampiras, de sapos, escorpiões, corvos, hidras, salamandras e outros animais sem nome, que constituem a fauna das regiões infernais; mas conhecem-se e nomeiam-se vários dos príncipes que comandam essas legiões, entre outros Belfegor, o demônio da luxúria, Abaddon ou Apolyon, o demônio do homicídio, Belzebu, o demônio dos desejos impuros, ou o senhor das moscas, que engendram a corrupção; e Mamon, o demônio da avareza, e Moloch, e Belial, e Baalgad e Astaroth, e tantos outros, e acima deles seu chefe universal, o sombrio arcanjo que tinha no céu o nome de Lúcifer, e usa no inferno o de Satã.
“Eis, em resumo, a ideia que nos dão do inferno, considerado do ponto de vista de sua natureza física e das penas físicas que aí se sofrem. Consultai os escritos dos Doutores da Igreja; interrogai nossas piedosas lendas; olhai as esculturas e os quadros de nossas igrejas; prestai ouvidos ao que se diz em nossas cátedras, e aprendereis muito mais.
* Reconhecemos, nessas visões, todos os caracteres dos pesadelos; é, pois, provável, ter sido um efeito desse gênero que se produziu com Santa Teresa.
** Em verdade, singular punição essa que consiste em poder continuar, em maior escala, o mal que fizeram em menor escala na Terra! Seria mais racional que eles próprios sofressem as consequências desse mal, em vez de se darem ao prazer de imputá-lo aos outros.
*** Esses mesmos demônios, rebeldes a Deus para o bem, são de uma docilidade exemplar para fazer o mal; nenhum deles recua nem abranda a marcha durante a eternidade. Que estranha metamorfose se operou neles, que haviam sido criados puros e perfeitos como os anjos! Não é bem singular vê-los dar exemplo de perfeita compreensão, de harmonia, de concórdia inabalável, enquanto os homens não sabem viver em paz e se entredilaceram na Terra? Vendo o luxo dos castigos reservados aos danados, e comparando sua situação com as dos demônios, nos perguntamos quem deve ser mais lamentado: os carrascos ou as vítimas?
“A ressurreição dos corpos é um milagre; mas é preciso um segundo milagre para dar a esses corpos mortais, já gastos uma vez pelas passageiras provas da vida, aniquilados já uma vez, a virtude de subsistir, sem se dissolverem, numa fornalha onde os metais se evaporariam. Que se diga que a alma é seu próprio carrasco, que Deus não a persegue, mas que ele a abandona no estado desventurado que ela escolheu, isso pode compreender-se com todo o rigor, embora o abandono eterno de um ser perdido e sofredor pareça pouco conforme à bondade do Criador; mas o que se diz da alma e das penas espirituais, não se pode, de maneira nenhuma, dizer dos corpos e das penas corporais; para perpetuar essas penas corporais, não basta que Deus retire sua mão, é preciso, ao contrário, que ele a mostre, que intervenha, que aja, sem o que o corpo sucumbiria.
“Os teólogos supõem, portanto, que Deus opera efetivamente, após a ressurreição, esse segundo milagre de que falamos. Ele tira primeiro, do sepulcro que os devorara, nossos corpos de argila; retira-os tal como aí entraram, com suas enfermidades originais e as degradações sucessivas da idade, da doença e do vício; ele devolve-os a nós nesse estado, decrépitos, friorentos, gotosos, cheios de necessidades, sensíveis a uma picada de abelha, todos cobertos dos estigmas que a vida e a morte aí imprimiram, e é esse o primeiro milagre; depois, a esses corpos débeis, prontos a retornar ao pó do qual saem, ele inflige uma propriedade que eles nunca tiveram, e eis o segundo milagre; ele lhes inflige a imortalidade, esse mesmo dom que, na sua cólera, dizei antes na sua misericórdia, ele retirara de Adão à saída do Éden. Quando Adão era imortal, era invulnerável, e quando cessou de ser invulnerável, tornou-se mortal; a morte seguiu de perto a dor.
“A ressurreição não nos restabelece, portanto, nem nas condições físicas do homem inocente, nem nas condições físicas do homem culpado; é somente uma ressurreição de nossas misérias, mas com uma sobrecarga de misérias novas, infinitamente mais horríveis; é, em parte, uma verdadeira criação, e a mais maliciosa que a imaginação tenha ousado conceber. Deus muda de ideia, e para juntar aos tormentos espirituais tormentos carnais que possam durar para sempre, ele muda bruscamente, por um efeito de seu poder, as leis e as propriedades por ele mesmo atribuídas, desde o começo, aos compostos da matéria; ressuscita carnes doentes e corrompidas, e amarrando com um nó indestrutível esses elementos que tendem a se separar por si mesmos, ele mantém e perpetua, contra a ordem natural, essa podridão viva; ele joga-a no fogo, não para purificá-la, mas para conservá-la tal qual ela é, sensível, sofredora, ardente, horrível, tal qual ele a quer, imortal.
“Faz-se de Deus, por esse milagre, um dos carrascos do inferno, pois se os condenados não podem imputar senão a si mesmos seus males espirituais, podem, em contrapartida, atribuir os outros a Ele. Era demasiado pouco, aparentemente, abandoná-los após a morte à tristeza, ao arrependimento e a todas as angústias de uma alma que sente que perdeu o bem supremo; Deus irá, segundo os teólogos, buscá-los nessa noite, no fundo do abismo; ele os trará um momento à luz, não para consolá-los, mas para revesti-los de um corpo hediondo, flamejante, imperecível, mais contaminado do que a túnica de Dejanira, e só então ele os abandona para sempre.
“Ele nem mesmo os abandona, visto que o inferno só subsiste, assim como a terra e o céu, por um ato permanente da sua vontade, sempre ativa, e tudo se desfaria se ele cessasse de sustentá-lo. Ele manterá então incessantemente a mão sobre eles para impedir seu fogo de se extinguir e seus corpos de se consumir, querendo que esses desgraçados imortais contribuam, pela perenidade de seu suplício, para a edificação dos eleitos.”
14. Dissemos, com razão, que o inferno dos cristãos exagerara o dos pagãos. No Tártaro, com efeito, veem-se os culpados torturados pelo remorso, sempre diante de seus crimes e de suas vítimas, oprimidos por aqueles que haviam oprimido durante a vida; veem-se fugir da luz que os penetra, e procurar em vão escapar aos olhares que os perseguem; o orgulho é aí abaixado e humilhado; todos carregam os estigmas de seu passado; todos são punidos por suas próprias faltas, a tal ponto que, para alguns, basta abandoná-los a si mesmos, e se julga inútil acrescentar outros castigos. Mas são sombras, ou seja, almas com seus corpos fluídicos, imagem de sua existência terrestre; não se veem os homens retomarem seu corpo carnal para sofrer materialmente, nem o fogo penetrar sob sua pele e saturá-los até à medula dos ossos, nem o luxo e o refinamento de suplícios que fazem a base do inferno moderno. Encontram-se lá juízes inflexíveis mas justos, que proporcionam a pena à falta, ao passo que no império de Satã, todos são confundidos nas mesmas torturas; tudo se baseia na materialidade; mesmo a equidade é banida.
Hoje em dia há, sem dúvida, na própria Igreja, muitos homens sensatos que não admitem essas coisas ao pé da letra e veem nelas apenas alegorias cujo sentido é preciso apreender; mas sua opinião é somente individual e não constitui lei. A crença no inferno material com todas as suas consequências, no entanto, ainda é um artigo de fé.
15. Pergunta-se como homens puderam ver essas coisas no êxtase se elas não existem. Não é aqui o lugar de explicar a fonte das imagens fantásticas que se produzem às vezes com as aparências da realidade. Diremos somente que é preciso ver nisso uma prova do princípio de que o êxtase é a menos segura de todas as revelações,* porque esse estado de sobre excitação não é sempre efeito de um desprendimento da alma tão completo quanto se poderia crer, e encontra-se aí com muita frequência o reflexo das preocupações da véspera. As ideias das quais o espírito é nutrido e das quais o cérebro, ou melhor, o envoltório perispiritual correspondente ao cérebro, conservou a impressão, reproduzem-se amplificadas como numa miragem, sob formas vaporosas que se cruzam e se confundem, e compõem conjuntos bizarros. Os extáticos de todos os cultos sempre viram coisas em relação com a fé de que estavam penetrados; não é então surpreendente que aqueles que, como Santa Teresa, estão fortemente imbuídos das ideias do inferno, tais como as apresentam as descrições verbais ou escritas e os quadros, tenham visões que não são, propriamente falando, senão a reprodução daquelas, e produzam o efeito de um pesadelo. Um pagão cheio de fé teria visto o Tártaro e as Fúrias, como teria visto no Olimpo Júpiter empunhando o raio.
* Livro dos Espíritos, n.os 443 e 444.
Capítulo V — O Purgatório
* O purgatório deu origem ao comércio escandaloso das indulgências, com o auxílio das quais se vendia a entrada no céu. Esse abuso foi a primeira causa da Reforma, e foi o que fez Lutero rejeitar o purgatório.
Ele rejeita as preces pelos mortos? Bem ao contrário, visto que os Espíritos sofredores as solicitam; ele faz disso um dever de caridade e demonstra sua eficácia para trazê-los de volta ao bem, e, por esse meio, abreviar seus tormentos.* Falando à inteligência, ele trouxe de volta a fé aos incrédulos, e à prece aqueles que zombavam dela. Mas diz que a eficácia das preces está no pensamento e não nas palavras, que as melhores são as do coração e não as dos lábios, as que se faz, e não as que se manda fazer por dinheiro. Quem ousaria então censurá-lo por isso?
Capítulo VI — Doutrina das penas eternas
Origem da doutrina das penas eternas.
Para tais homens, precisava-se de crenças religiosas assimiláveis à sua natureza ainda rude. Uma religião completamente espiritual, toda de amor e caridade, não se podia aliar com a brutalidade dos costumes e das paixões. Portanto, não censuremos Moisés por sua legislação draconiana, que mal bastava para conter seu povo indócil, nem por ter feito de Deus um Deus vingativo. Precisava-se disso naquela época; a doce doutrina de Jesus não teria encontrado eco e teria sido impotente.
Ora, quais eram os homens que viviam no tempo de Jesus? Eram almas recém criadas e encarnadas? Se assim era, Deus teria então criado no tempo de Jesus almas mais avançadas do que no tempo de Moisés. Mas, então, o que teria acontecido a estas últimas? Teriam permanecido durante a eternidade no embrutecimento? O simples bom senso repele essa suposição. Não; eram as mesmas almas que, depois de terem vivido sob o império da lei mosaica, tinham, ao longo de várias existências, adquirido um desenvolvimento suficiente para compreender uma doutrina mais elevada, e que hoje estão suficientemente avançadas para receber um ensinamento ainda mais completo.
A doutrina das penas e das recompensas futuras pertence a esta última ordem de ideias. A respeito das penas, sobretudo, não podia romper bruscamente com as ideias estabelecidas. Ele vinha traçar aos homens novos deveres: a caridade e o amor ao próximo substituindo o espírito de ódio e de vingança, a abnegação substituindo o egoísmo: já era muito; ele não podia racionalmente enfraquecer o temor do castigo reservado aos prevaricadores, sem enfraquecer ao mesmo tempo a ideia do dever. Prometia o reino dos céus aos bons; esse reino era, portanto, proibido aos maus; para onde iriam eles? Era preciso uma contrapartida de natureza a impressionar inteligências ainda demasiado materiais para se identificarem com a vida espiritual; pois não se deve perder de vista que Jesus se dirigia ao povo, à parte menos esclarecida da sociedade, para a qual se precisava de imagens de algum modo palpáveis, e não ideias sutis. É por isso que ele não entra a esse respeito em detalhes supérfluos: bastava-lhe opor uma punição à recompensa; não era necessário acrescentar mais naquela época.
Na oração dominical, ele nos ensina a dizer: “Senhor, perdoai as nossas ofensas, como nós perdoamos aqueles que nos ofenderam.” Se o culpado não tivesse nenhum perdão a esperar, seria inútil pedi-lo. Mas esse perdão é sem condição? É uma graça, uma remissão pura e simples da pena incorrida? Não; a medida desse perdão está subordinada à maneira pela qual tivermos perdoado; ou seja, se não perdoarmos, não seremos perdoados. Deus, fazendo do esquecimento das ofensas uma condição absoluta, não podia exigir que o homem fraco fizesse o que ele, onipotente, não faria. A oração dominical é um protesto diário contra a eterna vingança de Deus.
O caráter essencial das penas irrevogáveis é a ineficácia do arrependimento; ora, Jesus nunca disse que o arrependimento não encontraria graça diante de Deus. Em todas as ocasiões, ao contrário, ele mostra Deus clemente, misericordioso, pronto a receber o filho pródigo que voltou ao lar paterno. Não o mostra inflexível a não ser para o pecador endurecido; mas, se tem o castigo em uma mão, na outra tem sempre o perdão pronto a se estender sobre o culpado tão logo este volte sinceramente para ele. Esse não é certamente o quadro de um Deus sem compaixão. Também se deve observar que Jesus nunca pronunciou contra ninguém, nem mesmo contra os maiores culpados, uma condenação irremissível.
Sim, foram filósofos, ímpios, segundo alguns, que ficaram escandalizados de ver o nome de Deus profanado por atos indignos dele; foram eles que o mostraram aos homens em toda a sua grandeza, despojando-o das paixões e das fraquezas humanas que uma crença não esclarecida lhe emprestava. A religião ganhou em dignidade o que perdeu em prestígio externo; pois se há menos homens apegados à forma, há mais homens mais sinceramente religiosos de coração e sentimentos.
Mas, ao lado desses, quantos há que, detendo-se na superfície, foram conduzidos à negação de toda providência! Por não se ter sabido pôr convenientemente as crenças religiosas em harmonia com o progresso da razão humana, fez-se nascer em alguns o deísmo, em outros a incredulidade absoluta, em outros o panteísmo, ou seja, o homem fez-se ele mesmo deus, na falta de ver um deus suficientemente perfeito.
Argumentos a favor das penas eternas.
“Admite-se, entre os homens, que a gravidade da ofensa é proporcional à qualidade do ofendido. A que é cometida contra um soberano, sendo considerada como mais grave do que aquela que atinge um simples particular, é punida mais severamente. Ora, Deus é mais do que um soberano; visto que ele é infinito, a ofensa a ele é infinita, e deve ter um castigo infinito, ou seja, eterno.”
Refutação. — Toda refutação é um raciocínio que deve ter seu ponto de partida, uma base sobre a qual ele se apoia: premissas, numa palavra. Tiramos essas premissas dos próprios atributos de Deus:
Deus é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições.
É impossível conceber Deus a não ser com o infinito das perfeições; sem o quê ele não seria Deus, pois se poderia conceber um ser que possuísse o que lhe faltasse. Para que ele esteja acima de todos os seres, é preciso que nenhum possa sobrepujá-lo nem igualá-lo no que quer que seja. Portanto, é preciso que ele seja infinito em tudo.
Os atributos de Deus, sendo infinitos, não são susceptíveis nem de aumento nem de diminuição; sem isso, não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se se retirasse a menor parcela de um único de seus atributos, não se teria mais Deus, visto que poderia existir um ser mais perfeito.
O infinito de uma qualidade exclui a possibilidade da existência de uma qualidade contrária que a diminuiria ou a anularia. Um ser infinitamente bom não pode ter a menor parcela de maldade, nem o ser infinitamente mau ter a menor parcela de bondade; assim como um objeto não poderia ser de um preto absoluto com a mais ligeira nuance de branco, nem de um branco absoluto com a menor mancha de preto.
Estabelecido este ponto de partida, ao argumento acima opõem-se os argumentos seguintes:
Se o homem pudesse ser infinito no mal que faz, sê-lo-ia igualmente no bem, e então seria igual a Deus. Mas, se o homem fosse infinito no bem que faz, não faria nenhum mal, pois o bem absoluto é a exclusão de todo mal.
Admitindo que uma ofensa temporária à Divindade possa ser infinita, Deus, vingando-se por um castigo infinito, seria infinitamente vingativo; se ele é infinitamente vingativo, não pode ser infinitamente bom e misericordioso, pois um desses atributos é a negação do outro. Se ele não é infinitamente bom, não é perfeito, e se não é perfeito, não é Deus.
Se Deus é inexorável para com o culpado arrependido, não é misericordioso; se não é misericordioso, não é infinitamente bom.
Por que Deus faria para o homem uma lei do perdão, se não devesse ele mesmo perdoar? Daí resultaria que o homem que perdoa a seus inimigos, e lhes faz o bem em troca do mal, seria melhor do que Deus que permanece surdo ao arrependimento daquele que o ofendeu, e que lhe recusa, pela eternidade, a mais leve atenuação!
Deus, que está em toda a parte e vê tudo, deve ver as torturas dos condenados às penas eternas. Se ele é insensível a seus gemidos durante a eternidade, é eternamente sem compaixão; se é sem compaixão, não é infinitamente bom.
Isto não é posto em dúvida, e concebe-se que Deus perdoe apenas ao arrependido, e seja inflexível para com os endurecidos; mas, se ele é cheio de misericórdia para com a alma que se arrepende antes de ter deixado o corpo, por que deixa de sê-lo para com aquela que se arrepende depois da morte? Por que o arrependimento não teria eficácia a não ser durante a vida, que é apenas um instante, e não a teria mais durante a eternidade, que não tem fim? Se a bondade e a misericórdia de Deus são circunscritas a um determinado tempo, não são infinitas, e Deus não é infinitamente bom.
Se, por uma falta temporária, que sempre é o resultado da natureza imperfeita do homem, e com frequência do meio em que ele se encontra, a alma pode ser punida eternamente, sem esperança de atenuação nem de perdão, não há nenhuma proporção entre a falta e a punição: portanto, não há justiça.
Se o culpado volta para Deus, arrepende-se e pede para reparar o mal que fez, é um retorno ao bem, aos bons sentimentos. Se o castigo é irrevogável, esse retorno ao bem é sem fruto; visto que não tem em conta o bem, não é justiça. Entre os homens, o condenado que se emenda vê sua pena comutada, por vezes até perdoada; logo, haveria na justiça humana mais equidade do que na justiça divina!
Se a condenação é irrevogável, o arrependimento é inútil; o culpado, não tendo nada a esperar de seu retorno ao bem, persiste no mal; de modo que não só Deus o condena a sofrer perpetuamente, mas ainda a permanecer no mal pela eternidade. Isso não seria justiça nem bondade.
Se Deus, tocado pelo arrependimento de um condenado, pode estender sobre ele sua misericórdia e retirá-lo do inferno, não há mais penas eternas, e o julgamento pronunciado pelos homens é revogado.
“A recompensa concedida aos bons, sendo eterna, deve ter como contrapartida uma punição eterna. É justo proporcionar a punição à recompensa.”
Refutação. — Deus cria a alma visando a torná-la feliz ou desgraçada! Evidentemente, a felicidade da criatura deve ser a finalidade de sua criação, de outro modo Deus não seria bom. Ela atinge a felicidade por seu próprio mérito; adquirido o mérito, ela não pode perder o seu fruto, de outro modo degeneraria; a eternidade da felicidade é então a consequência de sua imortalidade.
Mas, antes de chegar à perfeição, ela tem lutas a sustentar, combates a travar com as paixões más. Não a tendo Deus criado perfeita, mas susceptível de se tornar perfeita, a fim de que ela tenha o mérito de suas obras, ela pode falhar. Suas quedas são as consequências de sua fraqueza natural. Se, por uma queda, ela devesse ser punida eternamente, poder-se-ia perguntar por que Deus não a criou mais forte. A punição que ela sofre é um aviso de que agiu mal, e que deve ter por resultado conduzi-la de volta ao bom caminho. Se a pena fosse irremissível, seu desejo de fazer melhor seria supérfluo; desde logo a finalidade providencial da criação não poderia ser alcançada, pois haveria seres predestinados à felicidade e outros à desgraça. Se uma alma culpada se arrepende, pode tornar-se boa; podendo tornar-se boa, ela pode aspirar à felicidade; Deus seria justo recusando-lhe os meios para isso?
Sendo o bem a meta final da criação, a felicidade, que é seu prêmio, deve ser eterna; o castigo, que é um meio de lá chegar, deve ser temporário. A mais vulgar noção de justiça, mesmo entre os homens, diz que não se pode castigar perpetuamente aquele que tem o desejo e a vontade de fazer o bem.
Refutação. — Esse raciocínio seria correto, se o fato das penas não serem eternas acarretasse a supressão de toda sanção penal. O estado bem aventurado ou desgraçado na vida futura é uma consequência rigorosa da justiça de Deus, pois uma identidade de situação entre o homem bom e o perverso seria a negação dessa justiça. Mas, embora não sendo eterno, o castigo não é menos penoso; quanto mais nele se crê mais ele é temido, e quanto mais racional ele é mais se crê nele. Uma penalidade na qual não se crê não é mais um freio, e a eternidade das penas é uma delas.
A crença nas penas eternas, como dissemos, teve sua utilidade e sua razão de ser numa certa época; hoje em dia, não só ela não toca mais, como faz incrédulos. Antes de colocá-la como uma necessidade, seria preciso demonstrar sua realidade. Seria preciso, acima de tudo, que se visse sua eficácia naqueles que a preconizam e se esforçam para demonstrá-la. Infelizmente, entre esses, demasiados provam por seus atos que não a temem de modo algum. Se ela é impotente para reprimir o mal naqueles que dizem crer nela, que domínio pode ter sobre aqueles que não acreditam nela?
Impossibilidade material das penas eternas.
Segundo este dogma, o destino da alma é fixado irremediavelmente depois da morte. Portanto, é um ponto de parada definitivo oposto ao progresso. Ora, a alma progride, sim ou não? Toda a questão reside nisso. Se ela progride, a eternidade das penas é impossível.
Será que se pode duvidar desse progresso, quando se vê a imensa variedade de aptidões morais e intelectuais que existem na terra, desde o selvagem até o homem civilizado? Quando se vê a diferença que um mesmo povo apresenta de um século para outro? Se se admitir que não são mais as mesmas almas, é preciso admitir então que Deus cria almas em todos os graus de avanço, segundo os tempos e os lugares; que ele favorece umas, ao passo que destina as outras a uma inferioridade perpétua: o que é incompatível com a justiça, que deve ser a mesma para todas as criaturas.
A esta última asserção, responde-se que a conversão desses santos personagens não é um resultado do progresso da alma, mas da graça que lhes foi concedida e pela qual foram tocados.
Mas aqui trata-se de um jogo de palavras. Se fizeram o mal, e mais tarde o bem, é porque se tornaram melhores; logo, progrediram. Deus lhes teria então, por um favor especial, concedido a graça de se corrigirem? Por que a eles e não a outros? É sempre a doutrina dos privilégios, incompatível com a justiça de Deus e seu igual amor por todas as suas criaturas.
Segundo a doutrina espírita, de acordo com as próprias palavras do Evangelho, com a lógica e a mais rigorosa justiça, o homem é filho de suas obras, durante esta vida e após a morte; ele não deve nada ao favor: Deus recompensa-o pelos seus esforços, e pune-o pela negligência enquanto for negligente.
A doutrina das penas eternas está ultrapassada.
O mesmo ocorre hoje com a humanidade; ela saiu da infância e não se deixa mais levar pela mão. O homem não é mais aquele instrumento passivo que se dobrava à força material, nem aquele ser crédulo que aceitava tudo de olhos fechados.
As ideias seguem um curso incessantemente progressivo; só se pode governar os homens seguindo esse curso; querer detê-lo ou fazê-lo recuar, ou simplesmente ficar para trás, enquanto ele avança, é perder-se. Seguir ou não seguir esse movimento é uma questão de vida ou morte, tanto para as religiões quanto para os governos. É um bem? É um mal? Seguramente, é um mal aos olhos daqueles que, vivendo no passado, veem esse passado lhes escapar; para aqueles que veem o futuro, é a lei do progresso que é uma lei de Deus, e, contra as leis de Deus, toda resistência é inútil; lutar contra sua vontade é querer destruir-se.
Por que então querer, a toda força, manter uma crença que cai em desuso, e que, em última análise, faz mais mal do que bem à religião? Infelizmente, é triste dizer, mas uma questão material domina aqui a questão religiosa. Esta crença foi amplamente explorada, com auxílio do pensamento de que com dinheiro se podia fazer abrir as portas do céu, e se preservar do inferno. As quantias que ela rendeu, e que ainda rende, são incalculáveis; é o imposto cobrado sobre o medo da eternidade. Sendo esse imposto facultativo, o produto é proporcional à crença; se a crença não existe mais, o produto torna-se nulo. A criança dá de bom grado seu bolo a quem lhe prometer expulsar o lobisomem; mas quando a criança não acredita mais no lobisomem, fica com o bolo.
Aos olhos dos incrédulos, o dogma da eternidade das penas é uma questão fútil da qual se riem; aos olhos do filósofo, tem uma gravidade social pelos abusos a que dá ensejo; o homem verdadeiramente religioso vê a dignidade da religião interessada na destruição desses abusos e de sua causa.
Ezequiel contra a eternidade das penas e o pecado original.
1. O Senhor me falou de novo e disse-me: — De onde vem que vos servis entre vós desta parábola, e que a tornastes provérbio em Israel: Os pais, dizeis, comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos sentem a acidez? — Juro por mim mesmo, disse o Senhor Deus, que essa parábola não passará mais entre vós a provérbio em Israel; — Pois todas as almas são minhas; a alma do filho é minha como a alma do pai; a alma que pecou morrerá ela mesma. — Se um homem é justo, se ele age segundo a equidade e a justiça; — Se não entristece nem oprime ninguém; se devolve a seu devedor a caução que ele lhe dera; se não toma nada do bem de outrem pela violência; se dá do seu pão àquele que tem fome; se cobre de vestes aqueles que estavam nus; — Se não empresta a juros e não recebe mais do que deu; se desvia sua mão da iniquidade, e se profere um julgamento equitativo entre dois homens que pleiteiam juntos; — Se ele anda pelo caminho de meus preceitos, e respeita minhas determinações para agir segundo a verdade: esse é justo, e viverá muito certamente, disse o Senhor Deus. — Se esse homem tiver um filho que seja um ladrão e que derrame sangue, ou que cometa alguma dessas faltas; — Esse filho morrerá muito certamente, visto que fez todas essas ações detestáveis, e seu sangue estará em sua cabeça. — Se esse homem tiver um filho que, vendo todos os crimes que o pai cometera, seja presa de temor, e se abstenha de imitá-lo; — Esse não morrerá por causa da iniquidade do pai, mas viverá muito certamente. — O pai, que oprimira os outros com calúnias, e que cometera ações criminosas no meio de seu povo, morreu por causa de sua própria iniquidade. — Se disserdes: Por que o filho não carregou a iniquidade do pai? É porque o filho agiu segundo a equidade e a justiça; que ele manteve todos os meus preceitos, e praticou-os; é por isso que ele viverá muito certamente. — A alma que pecou morrerá ela mesma: O filho não carregará a iniquidade do pai, e o pai não carregará a iniquidade do filho; a justiça do justo estará sobre ele, e a impiedade do ímpio estará sobre ele. — Se o ímpio fizer penitência de todos os pecados que cometera; se mantiver todos os meus preceitos, e se agir segundo a equidade e a justiça, ele viverá certamente e não morrerá. — Não me lembrarei mais de todas as iniquidades que ele cometera; ele viverá nas obras de justiça que tiver feito. — Quero eu a morte do ímpio? disse o Senhor Deus; e não quero antes que ele se converta, e que se retire de seu mau caminho, e que viva? (Ezequiel, cap. XXVIII.)
Dizei-lhes estas palavras: Juro por mim mesmo, disse o Senhor Deus, que não quero a morte do ímpio, mas quero que o ímpio se converta, que deixe seu mau caminho e que viva. (Ezequiel, cap. XXXIII, v. 11.)
Capítulo VII — As penas futuras segundo o Espiritismo
A carne é fraca:
Estudo fisiológico e moral.
Há tendências viciosas que são evidentemente inerentes ao Espírito, porque se devem mais ao moral do que ao físico; outras parecem mais consequência do organismo, e, por esse motivo, acredita-se que se é menos responsável: tais são as predisposições à cólera, à moleza, à sensualidade, etc.
É perfeitamente reconhecido hoje em dia, pelos filósofos espiritualistas, que os órgãos cerebrais, correspondendo às diversas aptidões, devem seu desenvolvimento à atividade do Espírito; que esse desenvolvimento é assim um efeito e não uma causa. Um homem não é músico porque tem a bossa da música, mas ele só tem a bossa da música porque seu Espírito é músico.
Se a atividade do Espírito reage sobre o cérebro, ela deve reagir igualmente sobre as outras partes do organismo. O Espírito é assim o artesão de seu próprio corpo, que ele modela, por assim dizer, a fim de adequá-lo a suas necessidades e à manifestação de suas tendências. Dado isso, a perfeição do corpo das raças avançadas não seria o produto de criações distintas, mas o resultado do trabalho do Espírito, que aperfeiçoa sua ferramenta à medida que suas faculdades aumentam.
Por uma consequência natural desse princípio, as disposições morais do Espírito devem modificar as qualidades do sangue, dar-lhe mais ou menos atividade, provocar uma secreção mais ou menos abundante de bile ou outros fluidos. É assim, por exemplo, que o guloso sente vir saliva à boca à vista de um prato apetitoso. Não é o prato que pode excitar o órgão do paladar, visto que não há contato; é portanto o Espírito, cuja sensualidade está desperta, que age, pelo pensamento, sobre esse órgão, ao passo que, sobre um outro, a vista desse prato não produz nenhum efeito. É ainda pela mesma razão que uma pessoa sensível derrama facilmente lágrimas; não é a abundância das lágrimas que dá a sensibilidade ao Espírito, mas é a sensibilidade do Espírito que provoca a secreção abundante das lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o organismo adequou-se a essa disposição normal do Espírito, como se adequou à do Espírito guloso.
Seguindo esta ordem de ideias, compreende-se que um Espírito irascível deve impelir ao temperamento bilioso; de onde decorre que um homem não é colérico porque é bilioso, mas que é bilioso porque é colérico. O mesmo ocorre com todas as outras disposições instintivas; um Espírito mole e indolente deixará seu organismo num estado de atonia em relação com seu caráter, ao passo que, se for ativo e enérgico, dará a seu sangue, a seus nervos qualidades completamente diferentes. A ação do Espírito sobre o físico é tão evidente, que se veem com frequência graves desordens orgânicas se produzir pelo efeito de violentas comoções morais. A expressão vulgar: “A emoção modificou-lhe o sangue” não é tão desprovida de sentido quanto se poderia crer; ora, o que pôde modificar o sangue, senão as disposições morais do Espírito?
Pode-se então admitir que o temperamento é, ao menos em parte, determinado pela natureza do Espírito, que é causa e não efeito. Dizemos em parte, porque há casos em que o físico influi evidentemente sobre o moral: é quando um estado mórbido ou anormal é determinado por uma causa externa, acidental, independente do Espírito, como a temperatura, o clima, os vícios hereditários de constituição, um mal estar passageiro, etc. O moral do Espírito pode então ser afetado em suas manifestações pelo estado patológico, sem que sua natureza intrínseca seja modificada.
Lançar a culpa de suas más ações à fraqueza da carne não é, portanto, senão um subterfúgio para escapar da responsabilidade. A carne só é fraca porque o Espírito é fraco, o que inverte a questão, e deixa ao Espírito a responsabilidade por todos os seus atos. A carne, que não tem pensamento nem vontade, nunca prevalece sobre o Espírito, que é o ser pensante e desejante; é o Espírito que dá à carne as qualidades correspondentes a seus instintos, como um artista imprime à sua obra material o cunho de seu gênio. O Espírito, libertado dos instintos da bestialidade, modela um corpo que não é mais um tirano para suas aspirações à espiritualidade de seu ser; é então que o homem come para viver, porque viver é uma necessidade, mas não vive mais para comer.
A responsabilidade moral pelos atos da vida é, pois, total; mas a razão diz que as consequências dessa responsabilidade devem ser proporcionais ao desenvolvimento intelectual do Espírito; quanto mais esclarecido ele for, menos é desculpável, porque com a inteligência e o senso moral nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto.
Esta lei explica o insucesso da medicina em certos casos. Uma vez que o temperamento é um efeito e não uma causa, os esforços tentados para modificá-lo são necessariamente paralisados pelas disposições morais do Espírito, que opõe uma resistência inconsciente e neutraliza a ação terapêutica. É, portanto, sobre a primeira causa que é preciso agir. Dai, se possível, coragem ao covarde, e vereis cessar os efeitos fisiológicos do medo.
Isto prova uma vez mais a necessidade, para a arte de curar, de levar em conta a ação do elemento espiritual sobre o organismo. (Revista espírita, março de 1869, p. 65.)
Não se trata aqui do relato de um único Espírito, que poderia ver as coisas somente do seu ponto de vista, sob um único aspecto, ou estar ainda dominado pelos preconceitos terrestres, nem de uma revelação feita a um único indivíduo, que poderia se deixar enganar pelas aparências, nem de uma visão extática que se presta a ilusões, e é com frequência apenas o reflexo de uma imaginação exaltada;* mas trata-se de inúmeros exemplos fornecidos por todas as categorias de Espíritos, de alto a baixo da escala, com a ajuda de inúmeros intermediários disseminados em todos os pontos do globo, de tal modo que a revelação não é privilégio de ninguém, cada qual é capaz de ver e observar, e ninguém é obrigado a crer apoiando-se na fé de outrem.
* Ver acima, cap. VI, n.o 7, e Livro dos Espíritos, n.os 443, 444.
Código penal da vida futura.
O Espiritismo não vem, portanto, mediante sua autoridade privada, formular um código de fantasia; sua lei, no que toca ao futuro da alma, deduzida de observações feitas sobre o fato, pode resumir-se nos seguintes pontos:
1.º — A alma ou o Espírito sofre, na vida espiritual, as consequências de todas as imperfeições de que não se despojou durante a vida corporal. Seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao grau de sua purificação ou de suas imperfeições.
2.º — A felicidade perfeita está ligada à perfeição, ou seja, à purificação completa do Espírito. Toda imperfeição é ao mesmo tempo uma causa de sofrimento e de privação de gozo, assim como toda qualidade adquirida é uma causa de gozo e de atenuação dos sofrimentos.
3.º — Não há uma única imperfeição da alma que não traga consigo suas consequências lastimáveis, inevitáveis, e nem uma única boa qualidade que não seja a fonte de um gozo. A soma das penas é assim proporcionada à soma das imperfeições, como a dos gozos está na razão da soma das qualidades.
A alma que tem dez imperfeições, por exemplo, sofre mais do que a que tem só três ou quatro; quando dessas dez imperfeições, não lhe restar senão um quarto ou a metade, ela sofrerá menos, e quando não lhe restar nenhuma, não sofrerá mais e será perfeitamente feliz. Tal como, na terra, aquele que tem várias doenças sofre mais do que o que só tem uma, ou nenhuma. Pela mesma razão, a alma que possui dez qualidades tem mais gozos do que a que tem menos qualidades.
4.º — Em virtude da lei do progresso, toda alma tendo a possibilidade de adquirir o bem que lhe falta e se desfazer do que tem de mau, segundo seus esforços e sua vontade, resulta daí que o futuro não está fechado a nenhuma criatura. Deus não repudia nenhum de seus filhos; recebe-os no seu seio à medida que atingem a perfeição, deixando assim a cada um o mérito de suas obras.
5.º — Estando o sofrimento vinculado à imperfeição, como o gozo à perfeição, a alma carrega em si mesma seu próprio castigo em toda parte onde se encontra: não é preciso para isso de um lugar circunscrito. O inferno está portanto em todo lugar onde há almas sofredoras, como o céu está em toda parte onde há almas bem aventuradas.
6.º — O bem e o mal que se faz são o produto das boas e das más qualidades que se possui. Não fazer o bem que se é capaz de fazer é então o resultado de uma imperfeição. Se toda imperfeição é uma fonte de sofrimento, o Espírito deve sofrer não só por todo o mal que fez, mas por todo o bem que poderia ter feito e não fez durante sua vida terrestre.
7.º — O Espírito sofre pelo próprio mal que fez, de maneira que sua atenção estando incessantemente concentrada nas consequências desse mal, ele compreenda melhor seus inconvenientes e seja motivado a corrigir-se.
8.º — Sendo a justiça de Deus infinita, é mantida uma conta rigorosa do bem e do mal; se não há uma única má ação, um único mau pensamento que não tenha suas consequências fatais, não há uma única boa ação, um único bom movimento da alma, o mais leve mérito, numa palavra, que seja perdido, mesmo nos mais perversos, porque é um começo de progresso.
9.º — Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras. Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda vez.
10.º — O Espírito sofre a pena de suas imperfeições, seja no mundo espiritual, seja no mundo corporal. Todas as misérias, todas as vicissitudes que suportamos na vida corporal são decorrentes de nossas imperfeições, expiações de faltas cometidas, seja na existência presente, seja nas precedentes.
Pela natureza dos sofrimentos e das vicissitudes suportadas na vida corpórea, pode-se julgar da natureza das faltas cometidas numa existência precedente, e das imperfeições que lhe são a causa.
11.º — A expiação varia segundo a natureza e a gravidade da falta; a mesma falta pode assim dar lugar a expiações diferentes, segundo as circunstâncias atenuantes ou agravantes nas quais ela foi cometida.
12.º — Não há, em relação à natureza e à duração do castigo, nenhuma regra absoluta e uniforme; a única lei geral é que toda falta recebe sua punição e toda boa ação sua recompensa, segundo seu valor.
13.º — A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do Espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr um fim aos sofrimentos, é um aperfeiçoamento sério, efetivo, e um retorno sincero ao bem.
O Espírito é assim sempre o árbitro de seu próprio destino; pode prolongar seus sofrimentos pela persistência no mal, aliviá-los ou abreviá-los por seus esforços para fazer o bem.
Uma condenação por um tempo determinado qualquer teria o duplo inconveniente: de continuar a atingir o Espírito que se tivesse melhorado, ou de cessar quando ele ainda estivesse no mal. Deus, que é justo, pune o mal enquanto ele existe; cessa de punir quando o mal não existe mais*; ou, sendo o mal moral, por si mesmo, uma causa de sofrimento, o sofrimento dura enquanto o mal subsistir; sua intensidade diminui à medida que o mal perde força.
* Ver acima, cap. VI, n.º 25, citação de Ezequiel.
14.º — Estando a duração do castigo subordinada à melhoria, daí resulta que o Espírito culpado que jamais se melhorasse sofreria sempre, e, para ele, a pena seria eterna.
15.º — Uma condição inerente à inferioridade dos Espíritos é não ver o termo de sua situação e crer que sofrerão sempre. É para eles um castigo que lhes parece dever ser eterno.*
* Perpétuo é sinônimo de eterno. Diz-se: o limite das neves perpétuas; o gelo eterno dos polos; diz-se também o secretário perpétuo da Academia, o que não quer dizer que ele o será perpetuamente, mas somente por um tempo ilimitado. Eterno e perpétuo empregam-se portanto no sentido de indeterminado. Nesta acepção, pode-se dizer que as penas são eternas, se se compreender que não têm uma duração limitada; elas são eternas para o Espírito que não vê seu fim.
16.º — O arrependimento é o primeiro passo para o aperfeiçoamento; mas sozinho não basta; são precisas ainda a expiação e a reparação.
Arrependimento, expiação e reparação são as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas consequências.
O arrependimento suaviza as dores da expiação, dando esperança e preparando as vias da reabilitação; mas somente a reparação pode anular o efeito, destruindo a causa; o perdão seria uma graça e não uma anulação.
17.º — O arrependimento pode ocorrer em todo lugar e a qualquer tempo; se for tardio, o culpado sofre por mais longo tempo.
A expiação consiste nos sofrimentos físicos e morais que são a consequência da falta cometida, seja desde a vida presente, seja, após a morte, na vida espiritual, seja numa nova existência corpórea, até que os traços da falta sejam apagados.
A reparação consiste em fazer bem àquele a quem se fez mal. Quem não repara suas faltas nesta vida, por impotência ou má vontade, encontrar-se-á, numa existência ulterior, em contato com as mesmas pessoas que tiveram queixas dele, e em condições escolhidas por ele mesmo, de maneira a poder provar-lhes sua dedicação, e fazer-lhes tanto bem quanto lhes fez mal.
Nem todas as faltas acarretam um prejuízo direto e efetivo; neste caso, a reparação se realiza: fazendo o que se devia fazer e que não se fez, cumprindo os deveres que foram negligenciados ou ignorados, as missões nas quais se falhou; praticando o bem contrário ao que se fez de mal: isto é, sendo humilde se foi orgulhoso, terno se foi duro, caridoso se foi egoísta, benevolente se foi malevolente, laborioso se foi preguiçoso, útil se foi inútil, temperante se foi dissoluto, um bom exemplo se deu mau exemplo, etc. É assim que o Espírito progride tirando proveito de seu passado.*
* A necessidade da reparação é um princípio de rigorosa justiça que se pode considerar como a verdadeira lei de reabilitação moral dos Espíritos. É uma doutrina que nenhuma religião proclamou ainda.
Entretanto algumas pessoas a repelem, porque achariam mais cômodo poder apagar suas más ações com um simples arrependimento, que custa apenas palavras, e com a ajuda de algumas fórmulas; elas podem acreditar que estão quites: verão mais tarde se isso lhes basta. Poder-se-ia perguntar-lhes se esse princípio não é consagrado pela lei humana, e se a justiça de Deus pode ser inferior à dos homens? Se elas se achariam satisfeitas com um indivíduo que, tendo-as arruinado por abuso de confiança, se limitasse a dizer que lamenta infinitamente. Por que recuariam perante uma obrigação que todo homem de bem reconhece ser seu dever cumprir, na medida das suas forças?
Quando essa perspectiva da reparação for inculcada na crença das massas, será um freio muito mais poderoso do que a do inferno e das penas eternas, porque se refere à atualidade da vida, e o homem compreenderá a razão de ser das circunstâncias penosas em que se acha colocado.
18.º — Os Espíritos imperfeitos são excluídos dos mundos felizes, cuja harmonia perturbariam; permanecem nos mundos inferiores, onde expiam suas faltas pelas tribulações da vida, e se purificam de suas imperfeições, até que mereçam encarnar-se nos mundos mais avançados moral e fisicamente.
Se pudéssemos conceber um lugar de castigo circunscrito, é nos mundos de expiação, pois é em volta desses mundos que pululam os Espíritos imperfeitos desencarnados, esperando uma nova existência que, permitindo-lhes reparar o mal que fizeram, ajudará em seu adiantamento.
19.º — Tendo sempre o Espírito seu livre-arbítrio, seu melhoramento é por vezes lento, e sua obstinação no mal muito tenaz. Ele pode persistir anos e séculos; mas chega sempre um momento em que sua teimosia em enfrentar a justiça de Deus se dobra diante do sofrimento, e em que, apesar de sua soberba, reconhece o poder superior que o domina. Assim que se manifestam nele as primeiras luzes do arrependimento, Deus lhe faz entrever a esperança.
Nenhum Espírito está na condição de jamais aperfeiçoar-se; de outro modo, estaria destinado a uma eterna inferioridade, e escaparia à lei do progresso que rege providencialmente todas as criaturas.
20.º — Sejam quais forem a inferioridade e a perversidade dos Espíritos, Deus nunca os abandona. Todos têm seu anjo guardião que vela por eles, espia os movimentos de sua alma e esforça-se para suscitar neles bons pensamentos, o desejo de progredir e de reparar, numa nova existência, o mal que fizeram. Contudo o guia protetor age quase sempre de maneira oculta, sem exercer nenhuma pressão. O Espírito deve aperfeiçoar-se pelo fato de sua própria vontade, e não em decorrência de qualquer coerção. Ele age bem ou mal em virtude de seu livre-arbítrio, mas sem ser fatalmente impelido num sentido ou noutro. Se age mal, sofre as consequências do mal enquanto persistir no mau caminho; desde que dá um passo para o bem, sente imediatamente os efeitos.
Observação. — Seria um erro crer que em virtude da lei do progresso, a certeza de chegar cedo ou tarde à perfeição e à bem aventurança pode ser um encorajamento a perseverar no mal, sob a condição de se arrepender mais tarde: primeiro, porque o Espírito inferior não vê o termo de sua situação; em segundo lugar, porque o Espírito, sendo o artífice de sua própria desgraça, acaba por compreender que depende dele fazê-la cessar, e que quanto mais tempo persistir no mal, por mais tempo será desgraçado; que seu sofrimento durará para sempre se ele mesmo não lhe puser fim. Seria portanto de sua parte um cálculo errado, e ele seria o primeiro enganado. Se, ao contrário, segundo o dogma das penas irremissíveis, toda esperança lhe está vedada para sempre, ele não tem nenhum interesse em voltar ao bem, que não lhe traz proveito.
Diante desta lei cai igualmente a objeção tirada da presciência divina. Deus, criando uma alma, sabe efetivamente se, em virtude de seu livre-arbítrio, ela tomará o bom ou o mau caminho; sabe que ela será punida se agir mal; mas sabe também que esse castigo temporário é um meio de lhe fazer compreender seu erro e de fazê-la entrar no bom caminho, ao qual ela chegará cedo ou arde. Segundo a doutrina das penas eternas, Deus sabe que ela falhará, e que está de antemão condenada a torturas sem fim.
21.º — Cada um é responsável apenas por suas faltas pessoais; ninguém carrega a pena das faltas de outrem, a menos que tenha dado lugar a tal, seja provocando-as por seu exemplo, seja não as impedindo quando tinha esse poder. É assim, por exemplo, que o suicida é sempre punido; mas aquele que, por sua dureza, impele um indivíduo ao desespero e daí a destruir-se, sofre uma pena ainda maior.
22.º — Embora a diversidade das punições seja infinita, há aquelas que são inerentes à inferioridade dos Espíritos, e cujas consequências, exceto as nuances, são quase idênticas.
A punição mais imediata, sobretudo para os que se apegaram à vida material negligenciando o progresso espiritual, consiste na lentidão da separação da alma e do corpo, nas angústias que acompanham a morte e o despertar na outra vida, na duração da perturbação que pode durar meses e anos. Para aqueles, ao contrário, cuja consciência é pura, que, durante a vida se identificaram com a vida espiritual e se desprenderam das coisas materiais, a separação é rápida, sem abalos, o despertar pacífico e a perturbação quase inexistente.
23.º — Um fenômeno, muito frequente nos Espíritos de alguma inferioridade moral, consiste em acreditar que ainda estão vivos, e essa ilusão pode prolongar-se durante anos, ao longo dos quais experimentam todas as necessidades, todos os tormentos e todas as perplexidades da vida.
24.º — Para o criminoso, a visão incessante de suas vítimas e das circunstâncias do crime é um cruel suplício.
25.º — Certos Espíritos estão mergulhados em espessas trevas; outros estão num isolamento absoluto no meio do espaço, atormentados pela ignorância de sua posição e de seu destino. Os mais culpados sofrem torturas tanto mais pungentes quanto não lhes veem o fim. Muitos são privados da visão dos seres que lhes são caros. Todos, geralmente, suportam com intensidade relativa os males, as dores e as necessidades que fizeram suportar aos outros, até que o arrependimento e o desejo de reparação venham trazer um alívio, fazendo entrever a possibilidade de pôr, por si mesmo, um fim a essa situação.
26.º — É um suplício para o orgulhoso ver acima de si, na glória, rodeados e festejados, aqueles que ele desprezara na terra, ao passo que ele é relegado às últimas fileiras; para o hipócrita, ver-se penetrado pela luz que põe a nu seus mais secretos pensamentos, que todos podem ler: nenhum meio têm de se esconder e dissimular-se; para o sensual, ter todas as tentações, todos os desejos, sem poder satisfazê-los; para o avaro, ver seu ouro dilapidado e não poder retê-lo; para o egoísta, ser abandonado por todos e sofrer tudo o que outros sofreram por sua causa: terá sede, e ninguém lhe dará de beber; terá fome, e ninguém lhe dará de comer; nenhuma mão amiga vem apertar a sua, nenhuma voz compassiva o vem consolar; não pensou senão em si próprio durante a vida, ninguém pensa nele nem o lastima depois da morte.
27.º — O meio de evitar ou atenuar as consequências de seus defeitos na vida futura é desfazer-se deles o máximo possível na vida presente; é reparar o mal, para não ter de repará-lo mais tarde de maneira horrível. Quanto mais se demora a se desfazer dos defeitos, mais as consequências são penosas e mais a reparação que se deve realizar é rigorosa.
28.º — A situação do Espírito, desde sua entrada na vida espiritual, é a que ele preparou pela vida corporal. Mais tarde, outra encarnação lhe é dada para a expiação e a reparação por novas provas; mas ele as aproveita mais ou menos em virtude de seu livre-arbítrio; se não aproveita, é uma tarefa a recomeçar cada vez em condições mais penosas: de modo que aquele que sofre muito na terra pode dizer que tinha muito que expiar; aqueles que gozam de uma felicidade aparente, apesar de seus vícios e sua inutilidade, estejam certos de pagá-lo muito caro numa existência ulterior. É neste sentido que Jesus disse: “Bem aventurados os aflitos, pois eles serão consolados.” ( Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V.)
29.º — A misericórdia de Deus é infinita, sem dúvida, mas não é cega. O culpado que ele perdoa não é exonerado, e enquanto não satisfez a justiça sofre as consequências de suas faltas. Por misericórdia infinita, é preciso entender que Deus não é inexorável, e que deixa sempre aberta a porta do retorno ao bem.
30.º — Sendo as penas temporárias e subordinadas ao arrependimento e à reparação, que dependem da livre vontade do homem, são ao mesmo tempo castigos e remédios que devem ajudar a curar as feridas do mal. Os Espíritos em punição são, portanto, não como condenados às galés por tempo, mas como doentes no hospital, que sofrem da doença que quase sempre é culpa deles, e dos meios curativos dolorosos de que ela necessita, mas que têm esperança de sarar, e que saram tanto mais depressa se seguirem mais exatamente as prescrições do médico que vela por eles com solicitude. Se prolongam seus sofrimentos por falta sua, o médico nada tem com isso.
31.º — Às penas que o Espírito suporta na vida espiritual vêm juntar-se as da vida corporal, que são a consequência das imperfeições do homem, de suas paixões, do mau emprego de suas faculdades, e a expiação de suas faltas presentes e passadas. É na vida corporal que o Espírito repara o mal das existências anteriores, que põe em prática as resoluções tomadas na vida espiritual. Assim se explicam essas misérias e essas vicissitudes que, ao primeiro olhar, parecem não ter razão de ser, e são absolutamente justas pois são a quitação do passado e servem ao nosso adiantamento.*
* Ver acima, cap. VI, “O Purgatório”, nos 3 e seguintes; e a seguir, cap. XX, “Exemplos de expiações terrestres”. — Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V: “Bem aventurados os aflitos”.
32.º — Deus, diz-se, não provaria um amor maior por suas criaturas se as tivesse criado infalíveis e, por conseguinte, isentas das vicissitudes vinculadas à imperfeição?
Teria sido preciso, para isso, que criasse seres perfeitos, nada tendo de adquirir, nem em conhecimento, nem em moralidade. Sem dúvida nenhuma, ele podia; se não o fez, é que, na sua sabedoria, quis que o progresso fosse a lei geral.
Os homens são imperfeitos, e, como tais, sujeitos a vicissitudes mais ou menos penosas; é um fato que é preciso aceitar, visto que existe. Inferir daí que Deus não é bom nem justo seria uma revolta contra ele.
Haveria injustiça se ele tivesse criado seres privilegiados, uns mais favorecidos que outros, gozando sem trabalho da felicidade que outros só atingem com dificuldade, ou nunca podem atingir. Mas onde sua justiça brilha é na igualdade absoluta que preside à criação de todos os Espíritos; todos têm um mesmo ponto de partida; nenhum que seja, na formação, mais bem dotado que os outros; nenhum cuja marcha ascensional seja facilitada por exceção: os que chegaram ao objetivo passaram, como os outros, pela sucessão das provas e da inferioridade.
Admitido isto, o que há de mais justo do que a liberdade de ação deixada a cada um? A estrada da felicidade está aberta a todos; o objetivo é o mesmo para todos; as condições para atingi-lo são as mesmas para todos; a lei gravada em todas as consciências é ensinada a todos. Deus fez da felicidade o prêmio do trabalho, e não do favor, a fim de que cada um tivesse seu mérito; cada um é livre de trabalhar ou de não fazer nada para seu adiantamento; aquele que trabalha muito e depressa é recompensado por isso mais cedo; aquele que se desvia do caminho ou perde tempo retarda a chegada, e só pode acusar a si mesmo. O bem e o mal são voluntários e facultativos; o homem, sendo livre, não é fatalmente impelido nem para um, nem para outro.
33.º — Apesar da diversidade dos gêneros e dos graus de sofrimento dos Espíritos imperfeitos, o código penal da vida futura pode resumir-se nestes três princípios:
O sofrimento está vinculado à imperfeição.
Toda imperfeição, e toda falta que dela decorre, traz consigo seu próprio castigo, por suas consequências naturais e inevitáveis, como a doença é decorrente dos excessos, o tédio da ociosidade, sem que haja necessidade de uma condenação especial para cada falta e cada indivíduo.
Todo homem, podendo desfazer-se das imperfeições pelo efeito de sua vontade, pode poupar a si mesmo os males que delas decorrem, e assegurar sua felicidade futura.
Tal é a lei da justiça divina: a cada um segundo suas obras, no céu como na terra.
Capítulo VIII — Os anjos
Os anjos segundo a Igreja.
* Tiramos este resumo da pastoral de Monsenhor Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para a Quaresma de 1864. Pode-se então considerá-lo, assim como o dos demônios, proveniente da mesma origem e citado no capítulo seguinte, como a última expressão do dogma da Igreja sobre este ponto.
“Tal é, segundo a fé, o plano divino na obra da criação: plano majestoso e completo, como convinha à sabedoria eterna. Assim concebido, ele oferece aos nossos pensamentos o ser em todos os graus e em todas as condições. Na esfera mais elevada aparecem a existência e a vida puramente espirituais; em último lugar, a existência e a vida puramente materiais; e no intervalo que as separa, uma maravilhosa união das duas substâncias, uma vida comum ao mesmo tempo do espírito inteligente e do corpo organizado.
“Nossa alma é de uma natureza simples e indivisível; mas ela é limitada em suas faculdades. A ideia que temos da perfeição faz-nos compreender que pode haver outros seres simples como ela, e superiores por suas qualidades e seus privilégios. Ela é grande e nobre; mas está associada à matéria, servida por órgãos frágeis, limitada em sua ação e poder. Por que não haveria outras naturezas ainda mais nobres, livres dessa escravidão e desses entraves, dotadas de uma força maior e de uma atividade incomparável? Antes que Deus tivesse posto o homem na terra para que este o conhecesse, amasse e servisse, não devia ele ter já chamado outras criaturas para compor sua corte celeste e adorá-lo na sua morada de glória? Deus, enfim, recebe das mãos do homem o tributo de honra e a homenagem deste universo; será espantoso que receba das mãos do anjo o incenso e a prece do homem? Se então os anjos não existissem, a grande obra do Criador não teria o coroamento e a perfeição de que ele era capaz; este mundo, que atesta sua onipotência, não seria mais a obra-prima de sua sabedoria; nossa própria razão, embora fraca e débil, poderia facilmente concebê-lo mais completo e mais acabado.
“A cada nova página dos livros sagrados do Antigo e do Novo Testamento, é feita menção a essas sublimes inteligências, em invocações piedosas ou em traços históricos. Sua intervenção aparece manifestamente na vida dos patriarcas e dos profetas. Deus serve-se do ministério deles, quer para intimar suas vontades, quer para anunciar os acontecimentos futuros; faz deles quase sempre os órgãos de sua justiça ou de sua misericórdia. A presença deles confunde-se com as diversas circunstâncias do nascimento, da vida e da paixão do Salvador; sua lembrança é inseparável da dos grandes homens e dos fatos mais importantes da antiguidade religiosa. Ele encontra-se mesmo no seio do politeísmo, e sob as fábulas da mitologia; pois a crença de que se trata é tão antiga e tão universal como o mundo; o culto que os pagãos prestavam aos bons e aos maus gênios era apenas uma falsa aplicação da verdade, um resto degenerado do dogma primitivo.
“As palavras do santo concílio de Latrão contêm uma distinção fundamental entre os anjos e os homens. Elas nos ensinam que os primeiros são puros Espíritos, ao passo que estes são compostos de um corpo e uma alma; ou seja, a natureza angélica mantém-se por si mesma, não só sem mistura, mas ainda sem associação real possível com a matéria, por mais leve e sutil que a suponham; ao passo que nossa alma, igualmente espiritual, está associada ao corpo de maneira a formar com ele uma única e mesma pessoa, e esse é essencialmente seu destino.
“Enquanto dura essa união tão íntima da alma com o corpo, essas duas substâncias têm uma vida em comum, e exercem uma sobre a outra uma influência recíproca; a alma não se pode libertar inteiramente da condição imperfeita que lhe advém daí: suas ideias chegam-lhe pelos sentidos, pela comparação dos objetos exteriores, e sempre sob imagens mais ou menos aparentes. Daí decorre que ela não pode contemplar a si mesma, e que não pode representar-se Deus e os anjos sem lhes supor alguma forma visível e palpável. É por isso que os anjos, para se mostrarem aos santos e aos profetas, precisaram recorrer a figuras corporais; mas essas figuras eram apenas corpos aéreos que eles faziam mover sem se identificarem com eles, ou atributos simbólicos relacionados com a missão de que estavam encarregados.
“Seu ser e seus movimentos não estão localizados e circunscritos num ponto fixo e limitado do espaço. Não estando presos a nenhum corpo, não podem ser detidos e limitados, como nós, por outros corpos; não ocupam nenhum lugar e não preenchem nenhum vazio; mas, assim como nossa alma está toda em nosso corpo e em cada uma de suas partes, igualmente eles estão inteiramente, e quase simultaneamente, em todos os pontos e em todas as partes do mundo; mais rápidos do que o pensamento, podem estar em toda a parte num piscar de olhos e aí operar por si mesmos, sem outros obstáculos a seus desígnios senão a vontade de Deus e a resistência da liberdade humana.
“Enquanto estamos reduzidos a ver apenas pouco a pouco, e numa certa medida, as coisas que estão fora de nós, e as verdades da ordem sobrenatural nos aparecem como enigma e num espelho, segundo a expressão do apóstolo São Paulo, eles veem sem esforço o que lhes importa saber, e estão em relação imediata com o objeto de seu pensamento. Seus conhecimentos não são o resultado da indução e do raciocínio, mas dessa intuição clara e profunda que abarca juntamente o gênero e as espécies que dele derivam, os princípios e as consequências que deles decorrem.
“A distância dos tempos, a diferença dos lugares, a multiplicidade dos objetos não podem produzir nenhuma confusão em seu espírito.
“A essência divina, sendo infinita, é incompreensível; ela tem mistérios e profundezas que eles não podem penetrar. Os desígnios particulares da Providência são-lhes ocultados; mas ela revela-lhes o segredo, quando os encarrega, em certas circunstâncias, de anunciá-los aos homens.
“As comunicações de Deus aos anjos, e dos anjos entre si, não se fazem, como entre nós, por meio de sons articulados e outros sinais sensíveis. As puras inteligências não precisam nem dos olhos para ver, nem dos ouvidos para ouvir; também não têm o órgão da voz para manifestar seus pensamentos, este intermediário habitual de nossas conversas não lhes é necessário; mas elas comunicam seus sentimentos de uma maneira que lhes é própria e que é completamente espiritual. Para serem compreendidas, basta-lhes querê-lo.
“Só Deus sabe a quantidade dos anjos. Essa quantidade, sem dúvida, não poderia ser infinita, e não o é; mas, de acordo com os autores sagrados e os doutores da Igreja, é muito considerável e verdadeiramente prodigiosa. Se é natural proporcionar o número de habitantes de uma cidade ao seu tamanho e à sua extensão, não sendo a terra mais do que um átomo em comparação ao firmamento e às imensas regiões do espaço, é preciso concluir que o número de habitantes do céu e do ar é muito maior do que o dos homens.
“Visto que a majestade dos reis tira seu esplendor do número de seus súditos, de seus oficiais e de seus servidores, o que haverá de mais capaz de nos dar uma ideia da majestade do Rei dos reis do que essa multidão incontável de anjos que povoam o céu e a terra, o mar e os abismos, e a dignidade dos que permanecem incessantemente prosternados ou de pé diante de seu trono?
“Os doutores da Igreja e os teólogos ensinam geralmente que os anjos estão distribuídos em três grandes hierarquias ou principados, e cada hierarquia em três companhias ou coros.
“Os da primeira e mais alta hierarquia são designados em razão das funções que preenchem no céu. Uns são chamados Serafins, porque estão como que inflamados diante de Deus pelos ardores da caridade; outros Querubins, porque são um reflexo luminosos de sua sabedoria; aqueles, Tronos, porque proclamam sua grandeza e fazem resplandecer seu brilho.
“Os da segunda hierarquia recebem seus nomes das operações que lhes são atribuídas no governo geral do universo; são eles: as Dominações, que designam aos anjos das ordens inferiores suas missões e seus encargos; as Virtudes, que realizam os prodígios exigidos pelos grandes interesses da Igreja e do gênero humano; as Potestades, que protegem por sua força e vigilância as leis que regem o mundo físico e moral.
“Os da terceira hierarquia têm por quinhão a direção das sociedades e das pessoas; são: os Principados, encarregados dos reinos, das províncias e das dioceses; os Arcanjos, que transmitem as mensagens de suma importância; os Anjos da Guarda, aqueles que acompanham cada um de nós para velar por nossa segurança e nossa santificação.”
* Concílio de Latrão.
Refutação.
Várias dificuldades capitais resultam desse sistema. Qual é, primeiro, essa vida puramente material? Trata-se da matéria bruta? Mas a matéria bruta é inanimada e não tem vida por si mesma. Quer-se falar das plantas e dos animais? Seria então uma quarta ordem na criação, pois não se pode negar que haja no animal inteligente mais do que numa planta, e nesta mais do que numa pedra. Quanto à alma humana, ela está unida diretamente a um corpo que é apenas matéria bruta, pois, sem alma, ele não tem mais vida do que um torrão de terra.
Esta divisão carece evidentemente de clareza, e não concorda em nada com a observação; parece-se com a teoria dos quatro elementos derrubada pelos progressos da ciência. Admitamos, entretanto, estes três termos: a criatura espiritual, a criatura humana e a criatura corporal; diz-se que é esse o plano divino, plano majestoso e completo, como convinha à sabedoria eterna. Notemos inicialmente que entre esses três termos não há nenhuma ligação necessária; são três criações distintas, formadas sucessivamente; de uma à outra, há solução de continuidade; ao passo que, na natureza, tudo se encadeia, tudo nos mostra uma admirável lei de unidade, da qual todos os elementos, que não são senão transformações uns dos outros, têm um elemento de ligação entre si. Esta teoria é verdadeira, no sentido em que esses três termos existem evidentemente; somente, ela é incompleta: faltam os pontos de contato, como é fácil demonstrar.
Contudo, o concílio de Latrão, concílio ecumênico que dita a lei em matéria de ortodoxia, diz: “Nós cremos firmemente que não há senão um verdadeiro Deus, eterno e infinito, o qual, no começo dos tempos, tirou juntas do nada uma e outra criatura, a espiritual e a corporal.” O começo dos tempos só se pode entender referente à eternidade transcorrida, pois o tempo é infinito, como o espaço: ele não tem começo nem fim. Esta expressão “o começo dos tempos” é uma figura que implica a ideia de uma anterioridade ilimitada. O concílio de Latrão crê então firmemente que as criaturas espirituais e as criaturas corporais foram formadas simultaneamente, e tiradas juntas do nada numa época indeterminada no passado. O que se torna então o texto bíblico, que fixa essa criação há seis mil anos? Admitindo que seja esse o começo do universo visível, não é seguramente o do tempo. Em qual acreditar, no do concílio ou no da Bíblia?
No entanto, a alma é imortal e o corpo é mortal; sua união com o corpo ocorre apenas uma vez, segundo a Igreja e, ainda que durasse um século, o que é isso comparado à eternidade? Mas, para muitíssimos, ela é apenas de algumas horas; de que utilidade pode ser para a alma essa união efêmera? Quando, em relação à eternidade, sua maior duração é um tempo imperceptível, será exato dizer que seu destino é estar essencialmente ligada ao corpo? Essa união não é na realidade mais do que um acidente, um ponto na vida da alma, e não seu estado essencial.
Se o destino essencial da alma é estar unida a um corpo material; se, pela sua natureza e segundo o objetivo providencial de sua criação, essa união é necessária às manifestações de suas faculdades, é preciso concluir daí que, sem o corpo, a alma humana é um ser incompleto; ora, para permanecer o que ela é por seu destino, após ter deixado um corpo, é preciso que ela retome outro, o que nos conduz à pluralidade forçosa das existências, dito de outro modo, à reencarnação perpétua. É verdadeiramente estranho que um concílio visto como uma das luzes da Igreja tenha identificado a esse ponto o ser espiritual e o ser material, que não podem de certa maneira existir um sem o outro, visto que a condição essencial de sua criação é estarem unidos.
6. O quadro hierárquico dos anjos nos ensina que muitas ordens têm, em suas atribuições, a direção do mundo físico e da humanidade, e que elas foram criadas com esse fim. Mas, segundo a Gênese, o mundo físico e a humanidade não existem senão há seis mil anos. O que faziam, então, os anjos antes desse tempo, durante a eternidade, quando os objetos de suas ocupações não existiam ainda? Os anjos foram criados desde toda a eternidade? Assim deve ter sido, pois eles servem à glorificação do Altíssimo. Se Deus os tivesse criado em uma época determinada, ele teria ficado, até ela, durante uma eternidade inteira sem adoradores.
É dito ainda: “As ideias chegam-lhe pelos sentidos, pela comparação com os objetos exteriores”. Essa é uma doutrina filosófica em parte verdadeira, mas não no sentido absoluto. É, segundo o eminente teólogo, uma condição inerente à natureza da alma, não receber as ideias a não ser pelos sentidos; ele esquece as ideias inatas, as faculdades por vezes tão transcendentes, a intuição das coisas que a criança traz ao nascer e que não deve a nenhuma instrução. Por que sentido esses jovens pastores, calculadores naturais que espantaram os estudiosos, adquiriram as ideias necessárias à solução quase instantânea dos problemas mais complicados? Pode-se dizer o mesmo de certos músicos, pintores e linguistas precoces.
“Os conhecimentos dos anjos não são o resultado da indução e do raciocínio”; eles sabem porque são anjos, sem ter necessidade de aprender; Deus criou-os assim: a alma, ao contrário deve aprender. Se a alma recebe as ideias apenas pelos órgãos corporais, quais são as que pode ter a alma de uma criança morta ao fim de alguns dias, admitindo, com a Igreja, que ela não renasça?
Se ela adquire novos conhecimentos depois da vida atual, é que ela pode progredir. Sem o progresso ulterior da alma, chega-se a consequências absurdas; com o progresso, chega-se à negação de todos os dogmas baseados no seu estado estacionário: o destino irrevogável, as penas eternas, etc. Se ela progride, onde se detém o progresso? Não há nenhuma razão para que ela não atinja o grau dos anjos ou puros Espíritos. Se ela pode chegar lá, não havia nenhuma necessidade de criar seres especiais e privilegiados, isentos de todo labor, e gozando da bem-aventurança eterna sem ter feito nada para conquistá-la, ao passo que outros seres menos favorecidos obtêm a suprema felicidade apenas à custa de longos e cruéis sofrimentos e das provas mais rudes. Deus pode, sem dúvida, mas se se admitir o infinito de suas perfeições, sem as quais não há Deus, é preciso admitir também que ele não faz nada inútil, nem nada que desminta a soberana justiça e a soberana bondade.
Não é rebaixar a Divindade comparar sua glória ao fausto dos soberanos da terra? Essa ideia, inculcada no espírito das massas ignorantes, falseia a opinião que se faz de sua verdadeira grandeza; é sempre Deus reduzido às mesquinhas proporções da humanidade; supor-lhe a necessidade de ter milhões de adoradores incessantemente prosternados ou de pé diante dele é emprestar-lhe as fraquezas dos monarcas déspotas e orgulhosos do Oriente. O que faz os soberanos verdadeiramente grandes? É a quantidade e o esplendor de seus cortesãos? Não; é sua bondade e sua justiça, é o merecido título de pais de seus súditos. Pergunta-se se há algo mais capaz de nos dar uma ideia da majestade de Deus do que a multidão de anjos que compõe sua corte? É certo que há algo melhor do que isso: é representá-lo soberanamente bom, justo e misericordioso para todas as suas criaturas; e não como um Deus colérico, ciumento, vingativo, inexorável, exterminador, parcial, criando para sua própria glória esses seres privilegiados, favorecidos com todos os dons, nascidos para a eterna felicidade, ao passo que aos outros ele faz adquirir penosamente a felicidade, e pune um momento de erro com uma eternidade de suplícios. . .
11. Sua união com o corpo, necessária para seus primeiros desenvolvimentos, ocorre apenas no período que se pode chamar sua infância e sua adolescência; assim que ela atinge certo grau de perfeição e de desmaterialização, essa união não é mais necessária, e a alma só progride pela vida do Espírito. De resto, por mais numerosas que sejam as existências corporais, elas são necessariamente limitadas pela vida do corpo, e sua soma total não compreende, em todos os casos, senão uma imperceptível parte da vida espiritual, que é indefinida.
Os anjos segundo o Espiritismo.
13. Mas a alma, nas primeiras fases de sua existência, assim como a criança, carece de experiência; é por isso que é falível. Deus não lhe dá a experiência, mas dá-lhe os meios de adquiri-la; cada passo errado no caminho do mal é para ela um atraso; ela sofre-lhe as consequências, e aprende à sua custa o que deve evitar. É assim que pouco a pouco se desenvolve, se aperfeiçoa e avança na hierarquia espiritual, até que tenha chegado ao estado de puro Espírito ou de anjo. Os anjos são, pois, as almas dos homens chegadas ao grau de perfeição que comporta a criatura, e gozando da plenitude da felicidade prometida. Antes de ter alcançado o grau supremo, eles gozam de uma felicidade relativa ao seu adiantamento, mas essa felicidade não está na ociosidade; está nas funções que agrada a Deus confiar-lhes, e que eles ficam felizes de cumprir, porque essas ocupações são um meio de progredir. (Ver cap. III, “O Céu”.)
14. A humanidade não está limitada à terra; ela ocupa os inúmeros mundos que circulam no espaço; ocupou aqueles que desapareceram, e ocupará os que se formarão. Deus criou por toda a eternidade e cria incessantemente. Portanto, muito tempo antes que a terra existisse, seja qual for a antiguidade que se lhe atribua, houvera em outros mundos Espíritos encarnados que percorreram as mesmas etapas que nós, Espíritos de formação mais recente, percorremos neste momento, e que chegaram ao objetivo antes mesmo que tivéssemos saído das mãos do Criador. Por toda a eternidade, houve então anjos ou puros Espíritos; mas perdendo-se sua existência humanitária no infinito do passado, é para nós como se eles sempre tivessem sido anjos.
15. Assim se acha realizada a grande lei de unidade da criação; Deus nunca esteve inativo; teve sempre puros Espíritos experientes e esclarecidos para a transmissão de suas ordens e para a direção de todas as partes do universo, desde o governo dos mundos até os mais ínfimos detalhes. Não precisou, portanto, criar seres privilegiados, isentos de encargos; todos, antigos ou novos, conquistaram seus graus na luta e por seu próprio mérito; todos, enfim, são os filhos de suas obras. Assim se cumpre igualmente a soberana justiça de Deus.
Capítulo IX — Os demônios
Origem da crença nos demônios.
A crença num poder superior é instintiva nos homens; é encontrada, sob diferentes formas, em todas as idades do mundo. Mas se, no grau de adiantamento intelectual a que chegaram hoje, discutem ainda sobre a natureza e os atributos desse poder, quão mais imperfeitas deviam ser suas noções sobre esse assunto na infância da humanidade!
Quanto mais o homem se aproxima do estado natural, mais o instinto domina nele, tal como se pode ver ainda nos povos selvagens e bárbaros de nossos dias; o que mais o preocupa, ou melhor, o que o ocupa exclusivamente é a satisfação das necessidades materiais, porque não tem outras. O único sentido que pode torná-lo acessível aos gozos puramente morais desenvolve-se apenas com o tempo e gradualmente; a alma tem sua infância, sua adolescência e sua virilidade, como o corpo humano; mas, para atingir a virilidade que a torna apta a compreender as coisas abstratas, quantas evoluções tem ela que percorrer na humanidade! Quantas existências deve realizar!
Sem remontar às primeiras eras, olhemos à nossa volta as pessoas do campo, e perguntemo-nos que sentimentos de admiração despertam nelas o esplendor do sol nascente, a abóbada estrelada, o gorjeio dos pássaros, o murmúrio das ondas claras, os prados coloridos de flores! Para elas, o sol se levanta porque está habituado, e, desde que dê suficiente calor para amadurecer as colheitas e não demasiado para queimá-las, é tudo o que pedem; se olham o céu, é para saber se fará bom ou mau tempo no dia seguinte; que os pássaros cantem ou não, é-lhes indiferente, desde que eles não lhes comam o grão; às melodias do rouxinol preferem o cacarejo das galinhas e o grunhido de seus porcos; o que pedem aos riachos claros ou lamacentos é não secarem e não causarem inundação; aos prados, dar-lhes boa erva, com ou sem flores: é tudo o que desejam, digamos mais, tudo o que elas compreendem da natureza, porém já estão longe dos homens primitivos!
Durante muito tempo o homem não compreendeu senão o bem e o mal físicos; o sentimento do bem moral e do mal moral assinalou um progresso na inteligência humana; somente então o homem entreviu a espiritualidade, e compreendeu que o poder sobre-humano está fora do mundo visível, e não nas coisas materiais. Isso foi obra de algumas inteligências de elite, mas que não puderam, contudo, ultrapassar certos limites.
5. O duplo princípio do bem e do mal foi, durante longos séculos e sob diferentes nomes, a base de todas as crenças religiosas. Foi personificado sob os nomes de Oromaz e de Arimã entre os persas, de Jeová e de Satã entre os hebreus. Mas, como todo soberano deve ter ministros, todas as religiões admiram poderes secundários, gênios bons ou maus. Os pagãos personificaram-nos sob uma multidão de individualidades tendo cada qual atribuições especiais para o bem e para o mal, para os vícios e para as virtudes, e às quais deram o nome geral de deuses. Os cristãos e os muçulmanos receberam dos hebreus os anjos e os demônios.
6. A doutrina dos demônios tem, portanto, sua origem na antiga crença nos dois princípios do bem e do mal. Temos que examiná-la aqui apenas do ponto de vista cristão, e ver se ela está em relação com o conhecimento mais exato que temos hoje em dia dos atributos da Divindade.
Estes atributos são o ponto de partida, a base de todas as doutrinas religiosas; os dogmas, o culto, as cerimônias, os usos, a moral, tudo está em relação com a ideia mais ou menos exata, mais ou menos elevada que se faz de Deus, desde o fetichismo até o Cristianismo. Se a essência íntima de Deus é ainda um mistério para nossa inteligência, compreendemo-lo porém melhor do que nunca, graças aos ensinamentos do Cristo. O Cristianismo, de acordo nisso com a razão, ensina-nos que:
Deus é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas perfeições.
Assim como está dito em outra parte (cap. VI, “Penas eternas): “Se se retirasse a menor parcela de um único dos atributos de Deus, não se teria mais Deus, porque poderia existir um ser mais perfeito.” Esses atributos, em sua mais absoluta plenitude, são então o critério de todas as religiões, a medida da verdade de cada um dos princípios que elas ensinam. Para que um desses princípios seja verdadeiro, é preciso que ele não prejudique nenhuma das perfeições de Deus. Vejamos se é o caso da doutrina vulgar dos demônios.
Os demônios segundo a Igreja.
Satã é de toda eternidade, como Deus, ou posterior a Deus? Se ele é de toda eternidade, ele é incriado, e por conseguinte igual a Deus. Deus então não é mais único; há o Deus do bem e o Deus do mal.
É ele posterior? Então é uma criatura de Deus. Visto que não faz senão o mal, que é incapaz de fazer o bem e de se arrepender, Deus criou um ser votado ao mal para sempre. Se o mal não é obra de Deus, mas a de uma de suas criaturas predestinadas a fazê-lo, Deus é sempre seu primeiro autor, e então ele não é infinitamente bom. O mesmo acontece com todos os seres maus chamados demônios.
8. Durante muito tempo, foi essa a crença sobre esse ponto. Hoje, diz-se*: “Deus, que é a bondade e a santidade por essência, não os criara maus e malfazejos. Sua mão paterna, que gosta de espalhar sobre todas as suas obras um reflexo de suas perfeições infinitas, cumulara-os dos dons mais magníficos. Às qualidades sobre-eminentes de sua natureza, ela acrescentara a generosidade de sua graça; ela os fizera em tudo semelhantes aos Espíritos sublimes que estão na glória e na felicidade; repartidos em todas as suas ordens e misturados em todas as suas fileiras, eles tinham o mesmo fim e os mesmos destinos; seu chefe foi o mais belo arcanjo. Eles poderiam ter, também, merecido ser confirmados para sempre na justiça e admitidos a gozar eternamente da bem-aventurança dos céus. Este último favor teria sido o auge de todos os outros favores de que eram objeto; mas ele devia ser o preço de sua docilidade, e eles se tornaram indignos dele; perderam-no por uma revolta audaciosa e insensata.”
“Qual foi o obstáculo à sua perseverança? Que verdade eles ignoraram? Que ato de fé e de adoração recusaram a Deus? A Igreja e os anais da história santa não o dizem de uma maneira positiva; mas parece certo que eles não aquiesceram nem à mediação do Filho de Deus para eles mesmos, nem à exaltação da natureza humana em Jesus Cristo.
“O Verbo divino, pelo qual todas as coisas foram feitas, é também o único mediador e salvador, no céu e na terra. O fim sobrenatural não foi dado aos anjos e aos homens a não ser em previsão de sua encarnação e de seus méritos; pois não há nenhuma proporção entre as obras dos Espíritos mais eminentes e essa recompensa, que não é senão o próprio Deus; nenhuma criatura poderia ter aí chegado sem essa intervenção maravilhosa e sublime de caridade. Ora, para preencher a distância infinita que separa a essência divina das obras de suas mãos, era preciso que ele reunisse em sua pessoa os dois extremos, e que associasse à sua divindade a natureza do anjo ou a do homem; e ele fez a escolha da natureza humana.
“Esse desígnio, concebido desde a eternidade, foi manifestado aos anjos antes de seu cumprimento; O Homem-Deus foi-lhes mostrado no futuro como Aquele que devia confirmá-los em graça e introduzi-los na glória, com a condição de que eles o adorariam na terra durante sua missão, e no céu pelos séculos dos séculos. Revelação inesperada, visão deslumbrante para os corações generosos e reconhecidos, mas mistério profundo, opressivo para os Espíritos soberbos! Esse fim sobrenatural, esse peso imenso de glória que lhes era proposto não seria portanto unicamente a recompensa de seus méritos pessoais! Jamais poderiam atribuir a si mesmos os títulos e a possessão! Um mediador entre eles e Deus, que injúria feita à sua dignidade! A preferência gratuita concedida à natureza humana, que injustiça! que prejuízo a seus direitos! Essa humanidade, que lhes é tão inferior, vê-lo-ão um dia, deificada por sua união com o Verbo, e sentada à direita de Deus, num trono resplandecente? Consentirão em lhe oferecer eternamente suas homenagens e suas adorações?
“Lúcifer e a terça parte dos anjos sucumbiram a esses pensamentos de orgulho e de ciúme. São Miguel, e com ele a maioria exclamaram: Quem é semelhante a Deus? Ele é o senhor de seus dons e o soberano Senhor de todas as coisas. Glória a Deus e ao Cordeiro que será imolado pela salvação do mundo! Mas o chefe dos rebeldes, esquecendo-se de que devia a seu Criador sua nobreza e suas prerrogativas, escutou apenas sua temeridade, e disse: ‘Sou eu que subirei ao céu; estabelecerei minha morada acima dos astros; sentar-me-ei na montanha da aliança, nos flancos do Aquilão; dominarei as nuvens mais altas, e serei semelhante ao Altíssimo.’ Os que partilhavam seus sentimentos acolheram suas palavras com um murmúrio de aprovação; e eles se encontravam em todas as ordens da hierarquia; mas sua multidão não os colocou ao abrigo do castigo.”
* As citações seguintes são extraídas da pastoral de Monsenhor Cardeal Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para a quaresma de 1865. Em razão do mérito pessoal e da posição do autor, pode-se considerá-las como a última expressão da Igreja sobre a doutrina dos demônios.
9. Esta doutrina suscita várias objeções.
1.º — Se Satã e os demônios eram anjos, é porque eram perfeitos; como, sendo perfeitos, puderam falhar e ignorar a esse ponto a autoridade de Deus, na presença do qual se encontravam? Conceber-se-ia ainda que, se não tivessem chegado a esse grau eminente senão gradualmente e depois de terem passado pelo caminho da imperfeição, pudessem ter tido um retorno deplorável; mas o que torna a coisa mais incompreensível é que no-los representam como tendo sido criados perfeitos. A consequência dessa teoria é esta: Deus quisera criar neles seres perfeitos, visto que os cumulara de todos os dons, e enganou-se; portanto, segundo a Igreja, Deus não é infalível.*
2.º — Visto que nem a Igreja nem os anais da história santa se explicam sobre a causa da revolta dos anjos contra Deus, que somente parece certo que ela esteve na recusa deles de reconhecer a missão futura do Cristo, que valor pode ter o quadro tão preciso e tão detalhado da cena que ocorreu naquela ocasião? De que fonte foram tiradas as palavras tão nítidas relatadas como tendo sido pronunciadas, e até os simples murmúrios? De duas coisas uma: ou a cena é verdadeira, ou não o é. Se é verdadeira, não há nenhuma incerteza, e então por que a Igreja não decide a questão? Se a Igreja e a história se calam, se a causa só parece certa, não é senão uma suposição, e a descrição da cena é uma obra de imaginação.**
3.º — As palavras atribuídas a Lúcifer acusam uma ignorância que é espantoso encontrar num arcanjo que, por sua própria natureza e no grau em que está colocado, não deve compartilhar, sobre a organização do universo, os erros e os preconceitos que os homens professaram até que a ciência tivesse vindo esclarecê-los. Como pode ele dizer: “Estabelecerei minha morada acima dos astros; dominarei as nuvens mais altas”? É sempre a antiga crença na terra como centro do mundo, no céu das nuvens que se estende até às estrelas, à região limitada das estrelas formando abóbada, e que a astronomia nos mostra disseminadas ao infinito, no espaço infinito. Como se sabe hoje que as nuvens não se estendem além de duas léguas da superfície da terra, para dizer que ele dominará as nuvens mais altas, e falar das montanhas, era preciso que a cena se passasse na superfície da terra, e que fosse aí a morada dos anjos; se essa morada é nas regiões superiores, era inútil dizer que ele se elevaria além das nuvens. Fazer os anjos terem uma linguagem marcada pela ignorância, é admitir que os homens, hoje, sabem mais do que os anjos. A Igreja sempre cometeu o erro de não levar em conta os progressos da ciência.
* Esta doutrina monstruosa é afirmada por Moisés, quando diz (Gênesis, cap. VI, v. 6 e 7): “Ele se arrependeu de ter feito o homem na terra. E, tocado de dor até ao fundo do coração, — ele disse: ‘Exterminarei da superfície da terra o homem que criei; exterminarei tudo, desde o homem até os animais, desde tudo o que rasteja sobre a terra até os pássaros do céu: pois eu me arrependo de tê-los feito.’”
Um Deus que se arrepende do que fez não é perfeito nem infalível: logo, não é Deus. São, no entanto, as palavras que a Igreja proclama como verdades santas. Também não se vê muito bem o que havia em comum entre os animais e a perversidade dos homens para merecerem seu extermínio.
** Encontra-se em Isaías, cap. XIV, v. 11 e seguintes: — “Teu orgulho foi precipitado nos infernos; teu corpo morto caiu por terra; tua cama será tua podridão, e tua vestimenta serão os vermes. — Como caíste do céu, Lúcifer, tu que parecias tão brilhante ao alvorecer? Como foste jogado na terra, tu que golpeavas as nações; — que dizias em teu coração: Subirei ao céu, estabelecerei meu trono acima dos astros de Deus, sentar-me-ei na montanha da aliança, nos flancos do Aquilão; colocar-me-ei acima das nuvens mais altas, e serei semelhante ao Altíssimo? — E no entanto foste precipitado dessa glória no inferno, até o mais profundo dos abismos. — Aqueles que te virem aproximar-se-ão de ti, e, depois de te terem encarado, dir-te-ão: Foi esse homem que apavorou a terra, que semeou o terror nos reinos, que fez do mundo um deserto, que destruiu suas cidades, e que manteve acorrentados aqueles que fizera prisioneiros?”
Estas palavras do profeta não são relativas à revolta dos anjos, mas uma alusão ao orgulho e à queda do rei da Babilônia, que mantinha os judeus em cativeiro, assim como provam os últimos versículos. O rei da Babilônia é designado, por alegoria, sob o nome de Lúcifer, mas não é aí feita nenhuma menção à cena descrita anteriormente. Estas palavras são as do rei que dizia em seu coração, e se colocava, por seu orgulho, acima de Deus, cujo povo mantinha cativo. A predição da libertação dos judeus, da ruína da Babilônia e da derrota dos assírios é, aliás, o assunto exclusivo deste capítulo.
10. A resposta à primeira objeção acha-se na passagem seguinte:
“A Escritura e a tradição dão o nome de céu ao lugar onde os anjos haviam sido postos no momento de sua criação. Mas não era o céu dos céus, o céu da visão beatífica, onde Deus se mostra a seus eleitos face a face, e onde seus eleitos o contemplam sem esforços e sem nuvens; pois, ali, não há mais perigo, nem possibilidade de pecar; a tentação e a fraqueza são aí desconhecidas; a justiça, a alegria, a paz reinam numa imutável segurança; a santidade e a glória são inadmissíveis. Era portanto uma outra região celeste, uma esfera luminosa e afortunada, onde essas nobres criaturas, amplamente favorecidas pelas comunicações divinas, deviam recebê-las e aderir a elas pela humildade da fé, antes de serem admitidas a ver-lhes claramente a realidade na própria essência de Deus.”
Resulta do que precede que os anjos que falharam pertenciam a uma categoria menos elevada, menos perfeita, e que eles ainda não tinham chegado ao lugar supremo onde a falta é impossível. Seja; mas então há aqui uma contradição manifesta, pois está dito antes que: “Deus os fizera em tudo semelhantes aos Espíritos sublimes; que, repartidos em todas as ordens e misturados a todas as suas fileiras, eles tinham o mesmo fim e o mesmo destino; que seu chefe era o mais belo arcanjo.” Se eles foram feitos em tudo semelhantes aos outros, não eram então de uma natureza inferior; se estavam misturados a todas as suas fileiras, não estavam num lugar especial. A objeção subsiste portanto inteiramente.
11. Há outra objeção que é, incontestavelmente, a mais grave e mais séria.
Está dito: “Esse desígnio (a mediação do Cristo), concebido desde a eternidade, foi manifestado aos anjos muito tempo antes de seu cumprimento.” Logo, Deus sabia desde a eternidade que os anjos, tanto quanto os homens, precisariam dessa mediação. Ele sabia, ou não sabia, que certos anjos falhariam; que essa queda acarretaria para eles a danação eterna sem esperança de retorno; que eles seriam destinados a tentar os homens; que aqueles dentre estes últimos que se deixassem seduzir sofreriam o mesmo destino. Se ele o sabia, criou portanto esses anjos, com conhecimento de causa, para sua perda irrevogável e para a da maior parte do gênero humano. Diga-se o que se quiser, é impossível conciliar sua criação, numa semelhante previsão, com a soberana bondade. Se ele não o sabia, não era onipotente. Em ambos os casos, é a negação de dois atributos sem a plenitude dos quais Deus não seria Deus.
* Ver acima, cap. VII, n.º 20, citação de Ezequiel.
13. Vejamos agora qual é seu destino e o que fazem.
“Mal sua revolta rebentou na linguagem dos Espíritos, ou seja, nos ímpetos de seus pensamentos, foram banidos irrevogavelmente da cidade celeste e precipitados no abismo.
“Por estas palavras, entendemos que eles foram relegados a um lugar de suplícios, onde sofrem a pena do fogo, conforme este texto do Evangelho, que saiu da própria boca do Salvador: ‘Ide, malditos, ao fogo eterno que foi preparado para o demônio e para seus anjos.’ São Pedro diz expressamente: ‘que Deus os entregou às correntes e às torturas do inferno; mas nem todos aí permanecem para sempre; é somente no fim do mundo que eles aí serão encerrados para sempre, com os reprovados. Presentemente, Deus permite que eles ocupem ainda um lugar nessa criação à qual pertencem; na ordem das coisas à qual se vincula sua existência, nas relações enfim que eles deviam ter com o homem, e da qual fazem o mais pernicioso abuso. Enquanto uns estão em sua morada tenebrosa, e servem de instrumento à justiça divina, contra as almas desafortunadas que seduziram, uma infinidade de outros, formando legiões invisíveis, sob o comando de seus chefes, residem nas camadas inferiores de nossa atmosfera e percorrem todas as partes do globo. Misturam-se a tudo o que acontece aqui embaixo, e tomam quase sempre parte muito ativa nisso.’”
No que se refere às palavras do Cristo, sobre o suplício do fogo eterno, esta questão é tratada no capítulo IV, “O Inferno”.
Suas funções consistem, portanto, em atormentar as almas que seduziram. Assim, eles não estão encarregados de punir aquelas que são culpadas de faltas livre e voluntariamente cometidas, mas daquelas que eles provocaram. Eles são, ao mesmo tempo, a causa da falta e o instrumento do castigo; e, coisa que a justiça humana, por mais imperfeita que seja, não admitiria, a vítima que sucumbe, por fraqueza, à ocasião que se faz nascer para tentá-la, é punida tão severamente quanto o agente provocador que emprega o ardil e a astúcia; mais severamente mesmo, pois ela vai para o inferno, ao deixar a terra, para jamais de lá sair, e lá sofrer sem trégua nem misericórdia durante a eternidade, ao passo que aquele que é a causa primeira de sua falta goza da prorrogação e da liberdade até o fim do mundo! A justiça de Deus não é então mais perfeita do que a dos homens?
Os demônios são assim os agentes provocadores predestinados a recrutar almas para o inferno, e isso com a permissão de Deus, que sabia, criando essas almas, o destino que lhes estava reservado. O que se diria, na terra, de um juiz que fizesse isso para povoar as prisões? Estranha ideia que nos dão da Divindade, de um Deus cujos atributos essenciais são a soberana justiça e a soberana bondade! E é em nome de Jesus Cristo, daquele que não pregou senão o amor, a caridade e o perdão, que se ensinam semelhantes doutrinas! Houve um tempo em que tais anomalias passavam desapercebidas; não se compreendiam, não se sentiam; o homem, curvado sob o jugo do despotismo, submetia cegamente sua razão, ou melhor, abdicava de sua razão; mas hoje a hora da emancipação soou: ele compreende a justiça, ele a quer durante sua vida e após a morte; é por isso que ele diz: “Isso não existe, isso não é possível, ou Deus não é Deus!”
16. “O castigo segue por toda a parte esses seres caídos e malditos, por toda a parte eles carregam seu inferno consigo: não têm mais paz nem repouso; as próprias doçuras da esperança se transformaram para eles em amargura: ela lhes é odiosa. A mão de Deus atingiu-os no próprio ato de seu pecado, e sua vontade se obstinou no mal. Tornados perversos, não querem cessar de sê-lo, e são-no para sempre.
“Eles são, depois do pecado, o que o homem é depois da morte. A reabilitação daqueles que caíram é portanto impossível; sua perda é doravante sem volta, e eles perseveram em seu orgulho, perante Deus, em seu ódio contra o Cristo, em seu ciúme contra a humanidade.
“Não tendo podido apropriar-se da glória do céu, pelo impulso de sua ambição, esforçam-se para estabelecer seu império na terra e banir daí o reino de Deus. O Verbo feito carne cumpriu, apesar deles, seus desígnios para a salvação e a glória da humanidade; todos os meios de ação de que eles dispõem são dedicados a lhe roubar as almas que ele resgatou; o ardil e a importunação, a mentira e a sedução, eles lançam mão de tudo para levá-las ao mal e consumar sua ruína.
“Com tais inimigos, a vida do homem, desde o berço até o túmulo, não pode ser, infelizmente, senão uma luta perpétua, pois eles são poderosos e infatigáveis.
“Esses inimigos, com efeito, são os mesmos que, após terem introduzido o mal no mundo, conseguiram cobrir a terra com as espessas trevas do erro e do vício; os que, durante longos séculos, se fizeram adorar como deuses, e que reinaram soberanos sobre os povos da antiguidade; os que, por fim, exercem ainda seu império tirânico sobre as regiões idólatras, e que fomentam a desordem e o escândalo até no seio das sociedades cristãs.
“Para compreender todos os recursos que eles têm a serviço de sua maldade, basta notar que eles não perderam nada das prodigiosas faculdades que são apanágio da natureza angélica. Sem dúvida, o futuro e sobretudo a ordem sobrenatural têm mistérios que Deus se reservou e que eles não podem descobrir; mas sua inteligência é bem superior à nossa, porque eles percebem numa vista d’olhos os efeitos em suas causas, e as causas em seus efeitos. Essa penetração permite-lhes anunciar de antemão acontecimentos que escapam às nossas conjeturas. A distância e a diversidade dos lugares se apagam diante de sua agilidade. Mais prontos do que o relâmpago, mais rápidos do que o pensamento, eles se acham quase ao mesmo tempo em diversos pontos do globo, e podem descrever ao longe as coisas de que são testemunhas no próprio momento em que elas se realizam.
“As leis gerais pelas quais Deus rege e governa este universo não são do domínio deles; eles não podem infringi-la, nem por conseguinte predizer ou realizar verdadeiros milagres; mas possuem a arte de imitar e falsificar, dentro de certos limites, as obras divinas; sabem que fenômenos resultam da combinação dos elementos, e predizem com certeza os que acontecem naturalmente, como os que eles mesmos têm o poder de produzir. Daí, esses numerosos oráculos, esses prestígios extraordinários cuja recordação os livros sagrados e profanos nos guardaram, e que serviram de base e de alimento a todas as superstições.
“Sua substância simples e imaterial subtrai-os ao nosso olhar; eles estão a nosso lado sem serem percebidos; impressionam nossa alma sem tocar nossos ouvidos; cremos obedecer a nosso próprio pensamento, enquanto sofremos suas tentações e sua funesta influência. Nossas disposições, ao contrário, são-lhes conhecidas pelas impressões que sentimos, e eles nos atacam, habitualmente, pelo nosso lado fraco. Para nos seduzirem mais seguramente, têm o costume de nos apresentar iscas e sugestões conformes a nossas tendências. Modificam sua ação segundo as circunstâncias e de acordo com os traços característicos de cada temperamento. Mas suas armas favoritas são a mentira e a hipocrisia.”
17. O castigo, diz-se, segue-os por toda a parte; não têm mais paz nem repouso. Isto não destrói a observação feita sobre a prorrogação de que gozam os que não estão no inferno, prorrogação tanto menos justificada quanto, estando fora, eles fazem mais mal. Sem dúvida nenhuma, eles não são bem-aventurados como os bons anjos; mas não conta nada a liberdade de que gozam? Se não têm a felicidade moral que a virtude concede, são incontestavelmente menos desgraçados que seus cúmplices que estão nas chamas. E depois, para o malvado, há uma espécie de gozo em fazer o mal com toda a liberdade. Perguntai a um criminoso se lhe é indiferente estar na prisão ou correr pelos campos, e cometer suas más ações à sua vontade. A posição é exatamente a mesma.
O remorso, diz-se, persegue-os sem trégua nem misericórdia. Mas esquece-se que o remorso é o precursor imediato do arrependimento, se não for já o próprio arrependimento. Ora, diz-se, “Tornados perversos, não querem cessar de sê-lo, e são-no para sempre.” Visto que não querem cessar de ser perversos, é que não têm remorsos; se tivessem o menor remorso, cessariam de fazer o mal e pediriam perdão. Logo, o remorso não é para eles um castigo.
18. “Eles são, depois do pecado, o que o homem é depois da morte. A reabilitação daqueles que caíram é portanto impossível.” De onde vem essa impossibilidade? Não se compreende que ela seja a consequência da semelhança deles com o homem depois da morte, frase que, de resto, não é muito clara. Essa impossibilidade vem da vontade deles ou da vontade de Deus? Se provém da vontade deles, denota uma extrema perversidade, um endurecimento absoluto no mal; desde logo, não se compreende que seres tão fundamentalmente maus tenham podido um dia ser anjos de virtude, e que, durante o tempo indefinido que passaram entre esses últimos, não tenham deixado transparecer nenhum traço de sua má natureza. Se é a vontade de Deus, compreende-se ainda menos que ele inflija, como castigo, a impossibilidade do retorno ao bem, após uma primeira falta. O Evangelho não diz nada semelhante.
19. “Sua perda, acrescenta-se, é doravante sem retorno, e eles perseveram em seu orgulho perante Deus.” De que lhes serviria não perseverar, visto que todo arrependimento é inútil? Se tivessem a esperança de uma reabilitação, a qualquer custo que fosse, o bem teria um objetivo para eles, ao passo que assim não o tem. Se eles perseveram no mal, é portanto porque a porta da esperança lhes está fechada. E por que Deus a fecha? Para se vingar da ofensa que recebeu da falta de submissão deles. Assim, para saciar seu ressentimento contra alguns culpados, ele prefere vê-los, não só sofrer, mas fazer o mal em vez do bem; induzir ao mal e impelir à perdição eterna todas as suas criaturas do gênero humano, ao passo que bastava um simples ato de clemência para evitar tão grande desastre, e um desastre previsto desde a eternidade!
Tratava-se, por ato de clemência, de uma graça pura e simples que talvez fosse um encorajamento ao mal? Não, mas de um perdão condicional, subordinado a um sincero retorno ao bem. Em vez de uma palavra de esperança e de misericórdia, faz-se Deus dizer: Pereça toda a raça humana, antes que minha vingança! E espantam-se que, com tal doutrina, haja incrédulos e ateus! É assim que Jesus nos representa seu Pai? Ele que nos faz uma lei expressa do esquecimento e do perdão das ofensas, que nos diz para pagar o mal com o bem, que põe o amor aos inimigos em primeiro lugar entre as virtudes que devem valer-nos o céu, gostaria ele então que os homens fossem melhores, mais justos, mais compassivos do que o próprio Deus?
Os demônios segundo o Espiritismo.
20. Segundo o Espiritismo, nem os anjos nem os demônios são seres à parte; a criação dos seres inteligentes é una. Unidos a corpos materiais, eles constituem a humanidade que povoa a terra e as outras esferas habitadas; desprendidos desse corpo, eles constituem o mundo espiritual ou dos Espíritos que povoam os espaços. Deus criou-os perfectíveis; deu-lhes por objetivo a perfeição, e a bem-aventurança que é sua consequência, mas não lhes deu a perfeição; quis que eles a devessem a seu trabalho pessoal, a fim de que tivessem esse mérito. Desde o instante de sua formação eles progridem, quer no estado de encarnação, quer no estado espiritual; chegados ao apogeu, são puros Espíritos, ou anjos segundo a denominação vulgar; de sorte que, desde o embrião do ser inteligente até o anjo, há uma cadeia ininterrupta da qual cada elo marca um grau no progresso.
Resulta daí que existem Espíritos em todos os graus de avanço moral e intelectual, segundo estejam no alto, na parte inferior, ou no meio da escala. Há Espíritos, por conseguinte, em todos os graus de saber e de ignorância, de bondade e de maldade. Nas posições inferiores, há os que estão ainda profundamente inclinados ao mal, e nele se comprazem. Pode-se chamá-los demônios, se se quiser, pois são capazes de todas as maldades atribuídas a estes últimos. Se o Espiritismo não lhes dá esse nome, é que se vincula a ele a ideia de seres distintos da humanidade, de uma natureza essencialmente perversa, devotados ao mal por toda a eternidade e incapazes de progredir no bem.
Aqueles que, por sua indiferença, sua negligência, sua obstinação e sua má vontade permanecem mais tempo nas posições inferiores, carregam essa pena, e o hábito do mal torna-lhes mais difícil sair dele; mas chega um tempo em que se cansam dessa existência penosa e dos sofrimentos que dela decorrem; é então que, comparando sua situação com a dos bons Espíritos, compreendem que seu interesse está no bem, e procuram aperfeiçoar-se, mas fazem-no por sua própria vontade e sem serem coagidos. Estão submetidos à lei do progresso por sua aptidão a progredir, mas não progridem contra sua vontade. Deus lhes fornece incessantemente os meios para tal, mas eles são livres de aproveitá-los ou não. Se o progresso fosse obrigatório, eles não teriam nenhum mérito, e Deus quer que eles tenham o de suas obras; ele não coloca nenhum na primeira posição por privilégio, mas a primeira posição está aberta a todos, e eles só chegam lá por seus esforços. Os anjos mais elevados conquistaram seu grau como os outros passando pelo caminho comum.
22. Chegados a certo grau de purificação, os Espíritos têm missões em proporção com seu avanço; eles cumprem todas as que são atribuídas aos anjos das diferentes ordens. Como Deus criou desde a eternidade, desde a eternidade houve Espíritos para satisfazer todas as necessidades do governo do universo. Uma única espécie de seres inteligentes, submetidos à lei do progresso, basta portanto para tudo. Esta unidade na criação, com o pensamento de que todos têm um ponto de partida, o mesmo caminho a percorrer, e que eles sobem por seu próprio mérito, corresponde bem melhor à justiça de Deus, do que a criação de espécies diferentes mais ou menos favorecidas por dons naturais que seriam outros tantos privilégios.
23. A doutrina vulgar sobre a natureza dos anjos, dos demônios e das almas humanas, não admitindo a lei do progresso, e vendo porém seres em diferentes graus, concluiu daí que eles eram o produto de outras tantas criações especiais. Ela chega assim a fazer de Deus um pai parcial, dando tudo a alguns de seus filhos, ao passo que impõe aos outros o mais rude trabalho. Não é espantoso que durante muito tempo os homens não tenham achado nada de chocante nessas preferências, enquanto faziam o mesmo a respeito de seus próprios filhos, pelos direitos de primogenitura e os privilégios do nascimento; podiam eles crer fazer mais mal do que Deus? Mas hoje em dia o círculo das ideias se alargou; eles veem mais claro; têm noções mais nítidas da justiça; querem-na para eles, e se nem sempre a encontram na terra, esperam ao menos encontrá-la mais perfeita no céu; é por isso que toda doutrina em que a justiça divina não aparece ao homem em sua maior pureza, repugna à sua razão.
Capítulo X — Intervenção dos demônios nas manifestações modernas
1. Os fenômenos espíritas modernos chamaram a atenção para os fatos análogos que ocorreram em todas as épocas, e a história nunca foi tão consultada a esse respeito quanto nestes últimos tempos. Da semelhança dos efeitos, concluiu-se pela unidade da causa. Como para todos os fatos extraordinários cuja razão é desconhecida, a ignorância viu aí uma causa sobrenatural, e a superstição amplificou-os acrescentando-lhes crenças absurdas; daí uma multidão de lendas que, na maior parte, são uma mistura de um pouco de verdade e de muita mentira.
2. As doutrinas sobre o demônio, que prevaleceram por tanto tempo, haviam exagerado tanto o seu poder, que tinham, por assim dizer, feito esquecer Deus; é por isso que lhe concediam o mérito de tudo o que parecia ultrapassar o poder humano; em toda a parte aparecia a mão de Satã; as melhores coisas, as descobertas mais úteis, todas aquelas que podiam tirar o homem da ignorância e alargar o círculo de suas ideias, foram muitas vezes olhadas como obras diabólicas. Os fenômenos espíritas, multiplicados em nossos dias, mais bem observados sobretudo com a ajuda das luzes da razão e dos dados da ciência, confirmaram, é verdade, a intervenção de inteligências ocultas, mas agindo sempre dentro dos limites das leis da natureza, e revelando, por sua ação, uma nova força e leis desconhecidas até este dia. A questão se reduz, portanto, a saber de que ordem são essas inteligências.
Enquanto não se teve sobre o mundo espiritual senão noções incertas ou sistemáticas, pôde haver equívoco; mas hoje que observações rigorosas e estudos experimentais esclareceram a natureza dos Espíritos, sua origem e seu destino, seu papel no universo e seu modo de ação, a questão está resolvida pelos fatos. Sabe-se agora que são almas daqueles que viveram na Terra. Sabe-se também que as diversas categorias de Espíritos bons e maus não constituem seres de diferentes espécies, mas assinalam apenas graus diversos de avanço. Segundo a posição que ocupam, em razão de seu desenvolvimento intelectual e moral, aqueles que se manifestam apresentam-se sob aspectos muito opostos, o que não os impede de terem saído da grande família humana, tanto quanto o selvagem, o bárbaro e o homem civilizado.
3. Sobre este ponto, como sobre muitos outros, a Igreja mantém suas velhas crenças no que se refere aos demônios. Ela diz: “Temos princípios que não variaram desde há dezoito séculos e que são imutáveis.” Seu erro é precisamente não levar em conta o progresso das ideias, e crer Deus muito pouco sábio para não proporcionar a revelação ao desenvolvimento da inteligência, para usar com os homens primitivos a mesma linguagem que com os homens avançados. Se, enquanto a humanidade avança, a religião se agarra aos velhos erros, tanto em matéria espiritual quanto em matéria científica, chega um momento em que ela é ultrapassada pela incredulidade.
4. Eis como a Igreja explica a intervenção exclusiva dos demônios nas manifestações modernas.*
“Em sua intervenção exterior, os demônios não estão menos atentos a dissimular sua presença, para afastar as suspeitas. Sempre ardilosos e pérfidos, atraem o homem para as suas emboscadas antes de lhe imporem as correntes da opressão e da servidão. Aqui, despertam a curiosidade por fenômenos e jogos pueris; ali, impressionam pelo espanto e subjugam pela atração do maravilhoso. Se o sobrenatural aparece, se seu poder os desmascara, eles acalmam e apaziguam as apreensões, solicitam a confiança, provocam a familiaridade. Ora se fazem passar por divindades e bons gênios; ora tomam emprestados os nomes e mesmo os traços dos mortos que deixaram uma memória entre os vivos. Graças a essas fraudes dignas da antiga serpente, eles falam, e são escutados; eles dogmatizam, e crê-se neles; misturam a suas mentiras algumas verdades, e fazem aceitar o erro sob todas as formas. É aí que desembocam as pretensas revelações de além-túmulo; é para obter esse resultado que a madeira, a pedra, as florestas e as fontes, o santuário dos ídolos, o pé das mesas, a mão das crianças, proferem oráculos; é por isso que a pitonisa profetiza em seu delírio, e que o ignorante, num misterioso sono, se torna subitamente o doutor da ciência. Enganar e perverter, tal é, em toda parte e em todos os tempos, o objetivo final dessas estranhas manifestações.
“Os resultados surpreendentes dessas observâncias ou desses atos, na maioria bizarros e ridículos, não podendo proceder de sua virtude intrínseca, nem da ordem estabelecida por Deus, não se pode esperá-los a não ser do concurso das potências ocultas. Tais são, notadamente, os fenômenos extraordinários obtidos, em nossos dias, pelos procedimentos, em aparência inofensivos do magnetismo, e o órgão inteligente das mesas falantes. Por meio dessas operações da magia moderna, vemos reproduzirem-se entre nós as evocações e os oráculos, as consultas, as curas e os prestígios que ilustraram os templos dos ídolos e os antros das sibilas. Como antigamente, comanda-se a madeira e a madeira obedece; interroga-se, e ela responde em todas as línguas e sobre todas as questões; fica-se na presença de seres invisíveis que usurpam os nomes dos mortos, e cujas pretensas revelações são marcadas pelo cunho da contradição e da mentira; formas ligeiras e sem consistência aparecem de repente, e se mostram dotadas de força sobre-humana.
“Quais são os agentes secretos desses fenômenos, e os verdadeiros atores dessas cenas inexplicáveis? Os anjos não aceitariam esses papéis indignos, e não se prestariam a todos os caprichos de uma vã curiosidade. As almas dos mortos, que Deus proíbe consultar, permanecem na morada que sua justiça lhes designou, e elas não podem, sem sua permissão, pôr-se às ordens dos vivos. Os seres misteriosos que acorrem assim ao primeiro apelo do herético e do ímpio como do fiel, do crime como da inocência, não são nem os enviados de Deus, nem os apóstolos da verdade e da salvação, mas os sequazes do erro e do inferno. Apesar do cuidado que tomam de se esconder sob os nomes mais veneráveis, traem-se pelo vazio de suas doutrinas, não menos do que pela baixeza de seus atos e a incoerência de suas palavras. Esforçam-se por apagar do símbolo religioso os dogmas do pecado original, da ressurreição dos corpos, da eternidade das penas, e toda a revelação divina, a fim de retirar às leis sua verdadeira sanção, e abrir ao vício todas as barreiras. Se suas sugestões pudessem prevalecer, elas formariam uma religião cômoda, para uso do socialismo e de todos aqueles que a noção do dever e da consciência importuna. A incredulidade de nosso século preparou-lhes o caminho. Possam as sociedades cristãs, por um retorno sincero à fé católica, escapar ao perigo desta nova e temível invasão!”
* As citações deste capítulo são tiradas da mesma pastoral que as do capítulo precedente, do qual são a sequência, e têm a mesma autoridade.
5. Toda esta teoria repousa sobre este princípio, de que os anjos e os demônios são seres distintos das almas dos homens, e que estas são o produto de uma criação especial, inferior mesmo aos demônios, em inteligência, em conhecimentos e faculdades de toda sorte. Ela conclui pela intervenção exclusiva dos maus anjos nas manifestações antigas e modernas atribuídas aos Espíritos dos mortos.
A possibilidade para as almas de se comunicarem com os vivos é uma questão de fato, um resultado de experiência e de observação que não discutiremos aqui. Mas admitamos, por hipótese, a doutrina acima, e vejamos se ela não se destrói por seus próprios argumentos.
6. Nas três categorias de anjos, segundo a Igreja, uma ocupa-se exclusivamente do céu; outra do governo do universo; a terceira está encarregada da terra, e nesta se encontram os anjos da guarda nomeados para a proteção de cada indivíduo. Somente uma parte dos anjos desta categoria tomou parte na revolta e foi transformada em demônios. Se Deus permitiu a estes últimos impelir os homens à sua perda, pelas sugestões de todos os gêneros e manifestações ostensivas, por que, se ele é soberanamente justo e bom, lhes teria concedido o imenso poder de que gozam, deixado uma liberdade de que fazem tão pernicioso uso, sem permitir aos bons anjos fazerem um contrapeso por manifestações semelhantes dirigidas para o bem? Admitamos que Deus tenha dado uma parte igual de poder aos bons e aos maus, o que seria já um favor exorbitante em benefício destes últimos, o homem ao menos teria sido livre para escolher; mas dar-lhes o monopólio da tentação, com a faculdade de simular o bem a ponto de enganarem, para seduzir mais facilmente, seria uma verdadeira armadilha montada à sua fraqueza, sua inexperiência, sua boa fé; digamos mais: seria abusar de sua confiança em Deus. A razão recusa-se a admitir tal parcialidade em benefício do mal. Vejamos os fatos.
7. Concedem-se aos demônios faculdades transcendentes; eles não perderam nada de sua natureza angélica; têm o saber, a perspicácia, a previdência, a clarividência dos anjos, e ademais, a astúcia, a habilidade e o ardil em supremo grau. Seu objetivo é desviar os homens do bem, e, acima de tudo, afastá-los de Deus para carregá-los para o inferno do qual são os provedores e recrutadores.
Compreende-se que eles se dirijam aos que estão no bom caminho e que estão perdidos para eles se persistirem nesse caminho; compreende-se a sedução e o simulacro do bem para atraí-los às suas redes; mas o que é incompreensível é que eles se dirijam aos que já lhes pertencem de corpo e alma para levá-los de volta a Deus e ao bem; ora, quem está mais em suas garras do que aqueles que renega e blasfema Deus, que mergulha no vício e na desordem das paixões? Já não está esse no caminho do inferno? Compreende-se que, seguro de sua presa, ele a excite a rezar a Deus, a submeter-se à sua vontade, a renunciar ao mal? que ele exalte aos olhos dele as delícias da vida dos bons Espíritos, e lhe pinte com horror a posição dos maus? Já se viu alguma vez um vendedor gabar a seus clientes a mercadoria do vizinho em detrimento da sua e incitá-los a ir à loja dele? Um recrutador depreciar a vida militar, e louvar o repouso da vida doméstica? Dizer aos recrutas que terão uma vida de fadigas e de privações; que têm dez chances em uma de ser mortos ou pelo menos perder os braços e as pernas?
Entretanto, é esse o papel estúpido que se faz o demônio representar, pois há um fato notório, é que em consequência das instruções emanadas do mundo invisível, veem-se todos os dias incrédulos e ateus levados de volta a Deus e rezarem com fervor, o que nunca tinham feito; pessoas viciosas trabalharem com ardor no seu aperfeiçoamento. Pretender que essa é a obra dos ardis do demônio é fazer dele um verdadeiro néscio. Ora, como não se trata aqui de uma suposição, mas de um resultado de experiência, e que contra um fato não há denegação possível, é preciso concluir daí ou que o demônio é um desastrado de primeiro grau, que não é nem tão ardiloso nem tão maligno quanto se pretende, e por conseguinte não é muito de se temer, visto que trabalha contra seus interesses — ou, então, que nem todas as manifestações são dele.
8. “Eles fazem aceitar o erro sob todas as suas formas; é para obter esse resultado que a madeira, a pedra, as florestas e as fontes, o santuário dos ídolos, o pé das mesas, a mão das crianças, proferem oráculos.”
Qual é então, de acordo com isso, o valor destas palavras do Evangelho: “Derramarei do meu espírito sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão; os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos terão sonhos. — Naqueles dias, derramarei do meu espírito sobre meus servos e sobre minhas servas, e eles profetizarão.” (Atos dos Apóstolos, cap. II, v. 17, 18). Não é a predição da medianimidade dada a todo o mundo, mesmo às crianças, e que se realiza em nossos dias? Os Apóstolos lançaram o anátema sobre essa faculdade? Não; eles a anunciam como um favor de Deus, e não como a obra do demônio. Os teólogos atuais sabem, portanto, mais sobre esse ponto do que os Apóstolos? Não deveriam ver o dedo de Deus no cumprimento dessas palavras?
9. “Por meio dessas operações da magia moderna vemos se reproduzirem entre nós as evocações e os oráculos, as consultas, as curas e os prestígios que ilustraram os templos dos ídolos e os antros das sibilas.”
Onde se veem as operações da magia nas evocações espíritas? Tempo houve em que se podia crer na sua eficácia, mas hoje em dia elas são ridículas; ninguém crê nelas, e o Espiritismo as condena. Na época em que a magia florescia, tinha-se apenas uma ideia muito imperfeita sobre a natureza dos Espíritos que eram olhados como seres dotados de um poder sobre-humano; eram chamados para obter-se deles, mesmo ao preço da alma, os favores da sorte e da fortuna, a descoberta dos tesouros, a revelação do futuro, ou filtros. A magia, com o auxílio de seus sinais, fórmulas e operações cabalísticas, devia fornecer pretensos segredos para operar prodígios, coagir os Espíritos a porem-se a serviço dos homens e lhes satisfazerem os desejos. Hoje sabe-se que os Espíritos não são senão as almas dos homens; não são chamados a não ser para receber os conselhos dos bons, moralizar os imperfeitos, e para continuar as relações com os seres que nos são caros. Eis o que diz o Espiritismo a esse respeito.
10. — Não há nenhum meio de coagir um Espírito a vir contra sua vontade, se ele for vosso igual ou vosso superior em moralidade, porque não tendes nenhuma autoridade sobre ele; se ele for vosso inferior, vós o podeis, se for para seu bem, pois então outros Espíritos vos secundam. ( O Livro dos Médiuns , cap. XXV.)
— A mais essencial de todas as disposições para as evocações é o recolhimento, quando se quer lidar com Espíritos sérios. Com a fé e o desejo do bem, é-se mais poderoso para evocar os Espíritos superiores. Elevando a alma, por alguns instantes de recolhimento no momento da evocação, é possível identificar-se com os bons Espíritos, e dispô-los a vir. ( O Livro dos Médiuns, cap. XXV.)
— Nenhum objeto, medalha ou talismã tem a propriedade de atrair ou repelir os Espíritos; a matéria não tem nenhuma ação sobre eles. Um bom Espírito nunca aconselha semelhantes absurdos. A virtude dos talismãs nunca existiu a não ser na imaginação das pessoas crédulas. ( O Livro dos Médiuns , cap. XXV.)
— Não há fórmula sacramental para a evocação dos Espíritos. Todo aquele que pretenda estabelecer uma, pode corajosamente ser tachado de charlatanismo, pois para os Espíritos a forma não é nada. Todavia, a evocação deve ser feita sempre em nome de Deus. ( O Livro dos Médiuns , cap. XVII.)
— Os Espíritos que marcam encontros em lugares lúgubres e fora de horas, são Espíritos que se divertem à custa dos que os escutam. É sempre inútil e muitas vezes perigoso ceder a tais sugestões; inútil porque só se ganha com isso o ser-se mistificado; perigoso, não pelo mal que os Espíritos podem fazer, mas pela influência que isso pode exercer sobre cérebros fracos. ( O Livro dos Médiuns, cap. XXV.)
— Não há dias nem horas mais especialmente propícios às evocações; isso é completamente indiferente para os Espíritos, como tudo o que é material, e seria uma superstição crer nessa influência. Os momentos mais favoráveis são aqueles em que o evocador pode estar menos distraído por suas ocupações habituais; em que seu corpo e seu Espírito estão mais calmos. ( O Livro dos Médiuns, cap. XXV.)
— A crítica malévola teve prazer em representar as comunicações espíritas como cercadas pelas práticas ridículas e supersticiosas da magia e da necromancia. Se aqueles que falam do Espiritismo sem o conhecer se tivessem dado ao trabalho de estudar aquilo de que querem falar, ter-se-iam poupado esforços de imaginação ou alegações que servem somente para provar sua ignorância ou sua má vontade. Para a edificação das pessoas alheias à ciência, diremos que não há, para se comunicar com os Espíritos, nem dias, nem horas, nem lugares que sejam mais propícios do que outros; que não é preciso, para evocá-los, nem fórmulas, nem palavras sacramentais ou cabalísticas; que não se precisa de nenhuma preparação nem de nenhuma iniciação; que o emprego de todo sinal ou objeto material, quer para atraí-los, quer para repeli-los, é sem efeito, e o pensamento basta; enfim, que os médiuns recebem as comunicações deles sem sair de seu estado normal, tão simples e naturalmente como se elas fossem ditadas por uma pessoa viva. Unicamente o charlatanismo poderia afetar maneiras excêntricas e acrescentar acessórios ridículos. ( O que é o Espiritismo? cap. II, n.º 49.)
— Em princípio, o futuro deve ser ocultado ao homem; é apenas em casos raros e excepcionais que Deus permite sua revelação. Se o homem conhecesse o futuro, negligenciaria o presente e não agiria com a mesma liberdade, porque seria dominado pelo pensamento de que, se uma coisa deve acontecer, ele não tem que se preocupar com isso, ou então procuraria entravá-lo. Deus não quis que assim fosse, a fim de que cada indivíduo concorresse para a realização das coisas, mesmo daquelas às quais ele gostaria de se opor. Deus permite a revelação do futuro quando esse conhecimento prévio deve facilitar a realização da coisa em vez de entravá-la, impelindo a agir diferentemente do que se teria feito sem isso. ( O Livro dos Espíritos, parte III, cap. X.)
— Os Espíritos não podem guiar nas pesquisas científicas e nas descobertas. A ciência é a obra do gênio; não se deve adquirir senão pelo trabalho, pois é unicamente pelo trabalho que o homem avança em seu caminho. Que mérito teria ele se lhe bastasse interrogar os Espíritos para saber tudo? Qualquer imbecil poderia tornar-se cientista a esse preço. O mesmo ocorre com as invenções e descobertas da indústria.
Quando chegou o tempo de uma descoberta, os Espíritos encarregados de dirigir sua marcha procuram o homem capaz de levá-la a bom termo, e inspiram-lhe as ideias necessárias, de maneira a deixar-lhe todo o mérito, pois essas ideias, é preciso que ele as elabore e as empregue. Isso acontece com todos os grandes trabalhos da inteligência humana. Os Espíritos deixam cada homem na sua esfera; daquele que é próprio apenas para cavar a terra, não farão o depositário dos segredos de Deus; mas saberão tirar da obscuridade o homem capaz de secundar seus desígnios. Não vos deixeis, portanto, arrastar pela curiosidade ou a ambição, numa via que não é o objetivo do Espiritismo, e que vos conduziria às mais ridículas mistificações. ( O Livro dos Médiuns, cap. XXVI.)
— Os Espíritos não podem fazer descobrir os tesouros escondidos. Os Espíritos superiores não se ocupam dessas coisas; mas Espíritos zombeteiros frequentemente indicam tesouros que não existem, ou podem fazer ver um tesouro num lugar, ao passo que está no lugar oposto; e isso tem sua utilidade para mostrar que a verdadeira fortuna está no trabalho. Se a Providência destina riquezas escondidas a alguém, ele as encontrará naturalmente, e não de outra forma. ( Livro dos médiuns, cap. XXVI.)
— O Espiritismo, esclarecendo-nos sobre as propriedades dos fluidos que são os agentes e os meios de ação do mundo invisível, e constituem uma das forças e uma das potências da natureza, nos dá a chave de uma quantidade de coisas inexplicadas e inexplicáveis por qualquer outro meio, e que passaram, nos tempos recuados, por prodígios. Ele revela, assim como o magnetismo, uma lei, se não desconhecida, ao menos mal compreendida; ou, melhor dizendo, conheciam-se os efeitos, pois eles se produziram em todos os tempos, mas não se conhecia a lei, e foi a ignorância dessa lei que engendrou a superstição. Conhecida essa lei, o maravilhoso desaparece, e os fenômenos entram na ordem das coisas naturais. Eis porque os espíritas não fazem mais milagres fazendo escrever os mortos ou girar uma mesa, do que o médico fazendo reviver um moribundo, ou o físico fazendo cair o raio. Aquele que pretendesse, com o auxílio desta ciência, fazer milagres, seria ou um ignorante da coisa, ou um impostor. ( Livro dos médiuns, cap. II.)
— Certas pessoas fazem uma ideia muito falsa das evocações; há as que creem que elas consistem em fazer voltar os mortos com o aparato lúgubre do túmulo. É apenas nos romances, nos contos fantásticos de fantasmas e no teatro que se veem os mortos ressequidos sair de seus sepulcros, vestidos ridiculamente de mortalhas, e fazendo bater os ossos. O Espiritismo, que nunca fez milagres, não fez esse milagre mais do que outros, e nunca fez reviver um corpo morto; quando o corpo está na sepultura, está lá definitivamente; mas o ser espiritual, fluídico, inteligente, não foi para o túmulo com seu invólucro grosseiro; separou-se dele no momento da morte, e uma vez operada a separação, um não tem mais nada em comum com o outro. ( O que é o Espiritismo? cap. II, n.º 48.)
11. Estendemo-nos sobre essas citações para mostrar que os princípios do Espiritismo não têm nenhuma relação com os da magia. Assim, não há Espíritos às ordens dos homens, não há meios de coagi-los, não há sinais ou fórmulas cabalísticos, não há descobertas de tesouros ou procedimentos para enriquecer, nada de milagres ou prodígios, não há adivinhações nem aparições fantásticas; nada enfim do que constitui o objetivo e os elementos essenciais da magia; não só o Espiritismo desaprova todas essas coisas, como demonstra sua impossibilidade e ineficácia. Não há portanto nenhuma analogia entre o fim e os meios da magia e os do Espiritismo; querer assimilá-los não pode ser devido senão à ignorância ou má fé; e como os princípios do Espiritismo não têm nada secreto, são formulados em termos claros e sem equívoco, o erro não poderia prevalecer.
Quanto aos fatos de curas, reconhecidos reais na pastoral citada precedentemente, o exemplo é mal escolhido para afastar das relações com os Espíritos. É um dos benefícios que mais tocam e que todos podem apreciar; poucas pessoas estarão dispostas a renunciar a isso, sobretudo depois de terem esgotado todos os outros meios, pelo temor de serem curados pelo diabo; mais de um, ao contrário, dirá que se o diabo o cura, faz uma boa ação.*
* Querendo persuadir pessoas curadas pelos Espíritos de que o haviam sido pelo diabo, separou-se radicalmente da Igreja grande número dessas pessoas que não pensavam em deixá-la.
12. “Quais são os agentes secretos desses fenômenos e os verdadeiros atores dessas cenas inexplicáveis? Os anjos não aceitariam esses papéis indignos, e não se prestariam a todos os caprichos de uma vã curiosidade.”
O autor quer falar das manifestações físicas dos Espíritos; na totalidade, há umas que seriam evidentemente pouco dignas de Espíritos superiores; e se substituirdes a palavra anjos por puros Espíritos, ou Espíritos superiores, tereis exatamente o que diz o Espiritismo. Mas não se poderia pôr na mesma linha as comunicações inteligentes pela escrita, a fala, a audição ou qualquer outro meio, que não são mais indignas dos bons Espíritos do que o são na terra dos homens mais eminentes, nem as aparições, as curas e uma quantidade de outras que os livros sagrados citam em profusão como sendo a realização dos anjos ou dos santos. Se então os anjos e os santos produziram outrora fenômenos semelhantes, por que não os produziriam hoje? Por que os mesmos feitos seriam hoje obra do demônio nas mãos de certas pessoas, ao passo que são considerados milagres santos em outras? Sustentar semelhante tese é abdicar de toda lógica.
O autor da pastoral está errado quando diz que esses fenômenos são inexplicáveis. Ao contrário, eles são hoje perfeitamente explicados, e é por isso que não são mais vistos como maravilhosos e sobrenaturais; e ainda que não o fossem, não seria mais lógico atribuí-los ao diabo, do que era outrora dar-lhe a honra de todos os efeitos naturais que não se compreendiam.
Por papéis indignos, é preciso entender os papéis ridículos e aqueles que consistem em fazer o mal; mas não se pode qualificar assim o dos Espíritos que fazem o bem, e reconduzem os homens a Deus e à virtude. Ora o Espiritismo diz expressamente que os papéis indignos não estão nas atribuições dos Espíritos superiores, assim como o provam os preceitos seguintes:
13. Reconhece-se a qualidade dos Espíritos por sua linguagem; a dos Espíritos verdadeiramente bons e superiores é sempre digna, nobre, lógica, isenta de contradição; ela respira a sabedoria, a benevolência, a modéstia e a moral mais pura; é concisa e sem palavras inúteis. Nos Espíritos inferiores, ignorantes ou orgulhosos, o vazio das ideias é quase sempre compensado pela abundância das palavras. Todo pensamento evidentemente falso, toda máxima contrária à sã moral, todo conselho ridículo, toda expressão grosseira, trivial ou simplesmente frívola, enfim, toda marca de malevolência, de presunção ou de arrogância, são sinais incontestáveis de inferioridade num Espírito.
— Os Espíritos superiores ocupam-se apenas das comunicações inteligentes com vistas a nossa instrução; as manifestações físicas ou puramente materiais são mais especialmente atribuições dos Espíritos inferiores, vulgarmente designados sob o nome de Espíritos batedores; como entre nós, as proezas admiráveis são feitos de saltimbancos e não de cientistas. Seria absurdo pensar que os Espíritos um pouco elevados se divirtam exibindo-se. ( O que é o Espiritismo? Cap. II, n.os 37, 38, 39, 40 e 60. – Ver também: Livro dos Espíritos, liv. II, cap. I: Diferentes ordens de Espíritos; escala espírita. Livro dos médiuns, 2.ª parte, cap. XXIV: “Identidade dos Espíritos”, Modos de se distinguirem os bons dos maus Espíritos.)
Qual é o homem de boa fé que pode ver nesses preceitos um papel indigno atribuído aos Espíritos elevados? Não só o Espiritismo não confunde os Espíritos, mas, enquanto se atribui aos demônios uma inteligência igual à dos anjos, ele constata, pela observação dos fatos, que os Espíritos inferiores são mais ou menos ignorantes, que seu horizonte moral é limitado, sua perspicácia restrita; que eles têm das coisas uma ideia muitas vezes falsa e incompleta, e são incapazes de resolver certas questões, o que os tornaria incapazes de fazer tudo o que se atribui aos demônios.
14. “As almas dos mortos, que Deus proíbe consultar, permanecem na morada que sua justiça lhes designou, e elas não podem, sem sua permissão, pôr-se às ordens dos vivos.”
O Espiritismo diz também que elas não podem vir sem a permissão de Deus, mas ele é ainda bem mais rigoroso, pois diz que nenhum Espírito, bom ou mau, pode vir sem essa permissão, ao passo que a Igreja atribui aos demônios o poder de dispensá-la. Ele vai ainda mais longe, visto dizer que, mesmo com essa permissão, quando eles acorrem ao apelo dos vivos, não é para se porem às suas ordens.
O Espírito evocado vem voluntariamente, ou é coagido a isso? — Ele obedece à vontade de Deus, ou seja, à lei geral que rege o universo; ele julga se é útil vir, e ainda nisso está seu livre-arbítrio. O Espírito superior vem sempre que é chamado para um objetivo útil; só se recusa a responder nos meios de pessoas pouco sérias e que tratam a coisa como brincadeira. ( Livro dos médiuns, cap. XXV.)
— O Espírito evocado pode se recusar a vir ao chamado que lhe é feito? — Perfeitamente; onde estaria seu livre-arbítrio sem isso? Credes que todos os seres do universo estejam às vossas ordens? E vós mesmos, credes que sois obrigados a responder a todos aqueles que pronunciam vosso nome? Quando digo que ele pode se recusar, entendo ao pedido do evocador, pois um Espírito inferior pode ser coagido a vir por um Espírito superior. ( O Livro dos médiuns, cap. XXV.)
Os espíritas estão tão convencidos de que não têm nenhum poder direto sobre os Espíritos, e nada podem obter deles sem a permissão de Deus, que, quando chamam um Espírito qualquer, dizem: Peço a Deus todo-poderoso que permita a um bom Espírito se comunicar comigo; peço também a meu anjo guardião para me assistir e afastar os maus Espíritos; ou então, quando se trata do chamado de um Espírito determinado: Peço a Deus todo-poderoso que permita ao Espírito de fulano se comunicar comigo. ( O Livro dos médiuns, cap. XVII, n.º 203.)
15. As acusações lançadas pela Igreja contra a prática das evocações não dizem portanto respeito ao Espiritismo, visto que elas se referem principalmente às operações da magia com a qual ele nada tem em comum; que ele condena nessas operações o que ela mesma condena; que ele não faz os bons Espíritos desempenharem um papel indigno deles, e, enfim, que ele declara nada pedir e nada obter sem a permissão de Deus.
Sem dúvida pode haver pessoas que abusam das evocações, que fazem disso um jogo, que as desviam de seu objetivo providencial para fazê-las servir a seus interesses pessoais, que, por ignorância, leviandade, orgulho ou cupidez, se afastam dos verdadeiros princípios da doutrina; mas o Espiritismo sério desautoriza-as, como a verdadeira religião desautoriza os falsos devotos e os excessos do fanatismo. Logo, não é lógico nem equitativo imputar ao Espiritismo em geral os abusos que ele condena, ou as faltas daqueles que não o compreendem. Antes de formular uma acusação, é preciso ver se ela acerta seu alvo. Diremos, portanto: A reprovação da Igreja cai sobre os charlatães, os exploradores, as práticas da magia e da feitiçaria; nisso, ela tem razão. Quando a crítica religiosa ou cética condena os abusos e estigmatiza o charlatanismo, faz destacar-se ainda melhor a pureza da sã doutrina que ela ajuda assim a se desembaraçar das más escórias; nisso ela facilita nossa tarefa. Seu erro é confundir o bem e o mal, por ignorância entre a maioria, por má fé em alguns; mas a distinção que ela não faz, outros fazem. Em todos os casos sua reprovação, à qual todo espírita sincero se associa no limite do que se aplica ao mal, não pode atingir a doutrina.
16. “Os seres misteriosos que acorrem assim ao primeiro apelo do herético e do ímpio como do fiel, do crime como da inocência, não são nem os enviados de Deus, nem os apóstolos da verdade e da salvação, mas os sequazes do erro e do inferno.”
Assim, ao herético, ao ímpio, ao criminoso, Deus não permite que bons Espíritos venham tirá-los do erro para salvá-los da perdição eterna! Ele não lhes envia senão os sequazes do inferno para os afundar ainda mais no lodaçal! Pior, ele não envia à inocência senão seres perversos para pervertê-la! Não se encontra então entre os anjos, essas criaturas privilegiadas de Deus, nenhum ser suficientemente compassivo para vir socorrer essas almas perdidas? Para que as brilhantes qualidades de que são dotados, se não servem senão para seus gozos pessoais? São eles realmente bons se, mergulhados nas delícias da contemplação, veem essas almas no caminho do inferno, sem as vir desviar daí? Não é a imagem do rico egoísta que, tendo tudo em profusão, deixa sem compaixão o pobre morrer de fome à sua porta? Não é o egoísmo erigido em virtude e posto até aos pés do Eterno?
Vós vos espantais que os bons Espíritos vão ao herético e ao ímpio; esqueceis portanto esta fala do Cristo: “Não é aquele que está bem que precisa de médico.” Não veríeis as coisas de um ponto mais elevado do que os fariseus de seu tempo? E vós, se fordes chamado por um descrente, recusareis ir a ele para pô-lo no bom caminho? Os bons Espíritos fazem, então, o que vós faríeis; eles vão ao ímpio fazê-lo ouvir boas palavras. Em vez de jogar o anátema nas comunicações de além-túmulo, bendizei os caminhos do Senhor, e admirai sua onipotência e sua bondade infinita.
17. Há, diz-se, os anjos guardiães; mas, quando esses anjos guardiães não se podem fazer ouvir pela voz misteriosa da consciência ou da inspiração, por que não empregariam eles meios de ação mais diretos e mais materiais, de natureza a impressionar os sentidos, já que os meios existem? Deus põe portanto esses meios, que são sua obra, visto que tudo vem dele e que nada ocorre sem sua permissão, à disposição unicamente dos maus Espíritos, ao passo que recusa aos bons servirem-se deles? De onde é preciso concluir que Deus dá aos demônios mais facilidades para perder os homens do que dá aos anjos guardiães para salvá-los.
Pois bem! o que os anjos guardiães não podem fazer, segundo a Igreja, os demônios fazem por eles; com a ajuda dessas mesmas comunicações ditas infernais, eles trazem de volta a Deus aqueles que o renegavam, e ao bem aqueles que estavam mergulhados no mal; eles nos dão o estranho espetáculo de milhões de homens que creem em Deus pelo poder do diabo, enquanto a Igreja fora incapaz de convertê-los. Quantos homens que nunca rezavam, rezam hoje com fervor, graças às instruções desses mesmos demônios! Quantos se veem que, de orgulhosos, egoístas e devassos, se tornaram humildes, caridosos e menos sensuais! E diz-se que é obra dos demônios! Se assim for, é preciso convir que o demônio lhes prestou maior serviço e os assistiu melhor do que os anjos. É preciso ter uma opinião bem pobre do julgamento dos homens neste século, para crer que eles possam aceitar cegamente tais ideias. Uma religião que faz sua pedra angular de semelhante doutrina, que se declara minada na base se lhe tirarem seus demônios, seu inferno, suas penas eternas e seu Deus sem compaixão, é uma religião que se suicida.
18. Deus, diz-se, que enviou seu Cristo para salvar os homens, não provou seu amor por suas criaturas e as deixou sem proteção? Sem dúvida nenhuma, Cristo é o divino Messias, enviado para ensinar aos homens a verdade e mostrar-lhes o bom caminho; mas, desde então, contai o número daqueles que puderam ouvir sua palavra de verdade, quantos morreram e morrerão sem a conhecer, e, entre os que a conhecem, quantos há que a põem em prática! Por que Deus, em sua solicitude pela salvação de seus filhos, não lhes enviaria outros mensageiros, vindo à terra inteira, penetrando nos mais humildes redutos, na casa dos grandes e dos pequenos, dos sábios e dos ignorantes, dos incrédulos como dos crentes, ensinar a verdade aos que não a compreendem, acudir por seu ensino direto e múltiplo à insuficiência da propagação do Evangelho, e apressar assim o advento do reino de Deus? E quando esses mensageiros chegam em massas incontáveis, abrindo os olhos aos cegos, convertendo os ímpios, curando os doentes, consolando os aflitos a exemplo de Jesus, vós os repelis, repudiais o bem que eles fazem, dizendo que são os demônios! Tal é também a linguagem dos fariseus a respeito de Jesus, pois também eles diziam que ele fazia o bem pelo poder do diabo. O que lhes respondeu ele? “Reconhecei a árvore pelo fruto; uma má árvore não pode dar bons frutos.”
Mas para eles, os frutos produzidos por Jesus eram maus, porque ele vinha destruir os abusos e proclamar a liberdade que devia arruinar-lhes a autoridade; se ele tivesse vindo adular seu orgulho, sancionar suas prevaricações e apoiar seu poder, teria sido a seus olhos o Messias esperado pelos judeus. Ele era sozinho, pobre e fraco, fizeram-no perecer e acreditaram matar sua palavra; mas sua palavra era divina e sobreviveu-lhe. No entanto ela se propagou com lentidão, e após dezoito séculos, mal é conhecida pela décima parte do gênero humano, e cismas numerosos ocorreram no seio de seus próprios discípulos. É então que Deus, em sua misericórdia, envia os Espíritos para completá-la, pô-la ao alcance de todos, e espalhá-la por toda a terra. Mas os Espíritos não estão encarnados num único homem, cuja voz seria limitada; eles são incontáveis, vão a toda parte e não se pode apanhá-los, eis porque seu ensinamento se espalha com a rapidez do relâmpago; eles falam ao coração e à razão, eis porque são compreendidos pelos mais humildes.
19. “Não é indigno de celestes mensageiros, dizeis vós, transmitirem suas instruções por um meio tão vulgar quanto o das mesas falantes? Não é ultrajá-los supor que eles se divertem com trivialidades e deixam sua brilhante morada para se pôr à disposição do primeiro que chega?”
Jesus não deixou a morada de seu Pai para nascer num estábulo? Onde vistes, aliás, que o Espiritismo atribuísse as coisas triviais a Espíritos superiores? Ele diz, ao contrário, que as coisas vulgares são o produto de Espíritos vulgares. Mas, por sua própria vulgaridade, elas impressionaram mais as imaginações; serviram para provar a existência do mundo espiritual e mostraram que esse mundo é completamente diferente do que se imaginara. Era o início; era simples como tudo o que está começando, mas a árvore saída de uma sementinha não deixa de estender, mais tarde, sua folhagem ao longe. Quem teria acreditado que da miserável manjedoura de Belém sairia um dia a palavra que devia agitar o mundo?
Sim, Cristo é o Messias divino; sim, sua palavra é a de verdade; sim, a religião fundada sobre essa palavra será inabalável, mas com a condição de seguir e de praticar seus sublimes ensinamentos, e de não fazer do Deus justo e bom que ele nos ensina a conhecer, um Deus parcial, vingativo e sem compaixão.
Capítulo XI — Da proibição de evocar os mortos
“Não é permitido colocar-se em relação com eles (os Espíritos), quer imediatamente, quer por intermédio daqueles que os invocam e os interrogam. A lei mosaica punia com a morte essas práticas detestáveis, correntes entre os gentios.” “Não vades encontrar os mágicos, está dito no livro do Levítico, e não dirijais aos adivinhos pergunta nenhuma, por medo de incorrer na mácula dirigindo-vos a eles.” (Cap. XIX, v. 31.) — “Se um homem ou uma mulher tem um Espírito de Píton ou de adivinhação, que sejam punidos com a morte; serão lapidados, e seu sangue recairá sobre suas cabeças.” (Cap. XX, v. 27.) E no livro do Deuteronômio: “Que não haja entre vós ninguém que consulte os adivinhos, que observe os sonhos e os augúrios, ou que use de malefícios, sortilégios e encantamentos, ou que consulte aqueles que têm o Espírito de Píton e que praticam a adivinhação, ou que interrogam os mortos para saber a verdade; pois o Senhor tem em abominação todas essas coisas, e destruirá, à vossa chegada, as nações que cometem esses crimes.” (Cap. XVIII, vv. 10, 11, 12.)
“Não vos afasteis de vosso Deus, para ir procurar os mágicos, e não consulteis os adivinhos, de medo de vos maculardes dirigindo-vos a eles. Eu sou o Senhor vosso Deus.” (Levítico, cap. XIX, v. 31.)
“Se um homem ou uma mulher tem um Espírito de Píton, ou um espírito de adivinhação, que sejam punidos com a morte; serão lapidados, e seu sangue recairá sobre suas cabeças.” (Id., cap. XX, v. 27.)
“Quando tiverdes entrado no país que o Senhor vosso Deus vos dará, ficai muito atentos a não querer imitar as abominações desses povos; — e que não se encontre ninguém entre vós que pretenda purificar seu filho ou sua filha, fazendo-os passar pelo fogo, ou que consulte os adivinhos, ou que observe os sonhos e os augúrios, ou que use de malefícios, de sortilégios e encantamentos, ou que consulte aqueles que têm o espírito de Píton, e que se dedicam a adivinhar, ou que interrogam os mortos para aprender a verdade. — Pois o Senhor tem em abominação todas essas coisas, e ele exterminará todos esses povos à vossa entrada, por causa desses tipos de crimes que eles cometeram.” (Deuteronômio, cap. XVIII, vv. 9, 10, 11 e 12.)
É preciso, aliás, se reportar aos motivos que provocaram essa proibição, motivos que tinham então sua razão de ser, mas que não mais existem seguramente hoje em dia. O legislador hebreu queria que seu povo rompesse com todos os costumes trazidos do Egito, onde aquele das evocações era usual e um motivo de abuso, como provam estas palavras de Isaías: “O Espírito do Egito se aniquilará nela, e derrubarei sua prudência; eles consultarão seus ídolos, seus adivinhos, seus pítons e seus mágicos.” (Cap. XIX, v. 3.)
Além disso, os israelitas não deviam contrair nenhuma aliança com as nações estrangeiras; ora, eles iam encontrar as mesmas práticas entre aquelas onde iam entrar e que deviam combater. Moisés precisou então, por política, inspirar ao povo hebreu aversão por todos seus costumes que tivessem tido pontos de contato se eles os tivessem assimilado. Para motivar essa aversão, era preciso apresentá-los como reprovados pelo próprio Deus; é por isso que ele disse: “O Senhor tem em abominação todas essas coisas, e ele destruirá, à vossa chegada, as nações que cometem esses crimes.”
“E quando eles vos disserem: Consultai os mágicos e os adivinhos que falam baixinho em seus encantamentos, respondei-lhes: Cada povo não consulta seu Deus? E vai-se falar aos mortos do que diz respeito aos vivos?” (Isaías, cap. VIII, v. 19.)
“Sou eu que faço ver a falsidade dos prodígios da magia; que torno insensatos aqueles que se dedicam a adivinhar; que confundo o espírito dos sábios, e que provo ser loucura a sua vã ciência.” (Cap. XLIV, v. 25.)
“Que esses augúrios que estudam o céu, que contemplam os astros, e que contam os meses para tirar daí as predições que querem dar-vos do futuro, venham agora, e que eles vos salvem. – Eles se tornaram como a palha, o fogo os devorou; não poderão livrar suas almas das chamas ardentes; nem mesmo restará de seu abrasamento carvões com os quais se possa aquecer, nem fogo diante do qual se possa sentar. – Eis o que se tornarão todas essas coisas nas quais vós vos empregáveis com tanto trabalho: esses mercadores que traficaram convosco desde vossa juventude fugirão todos, um para um lado, o outro para o outro, sem que se encontre um único que vos tire de vossos males.” (Cap. XLVII, vv. 13, 14, 15.)
Neste capítulo, Isaías dirige-se aos babilônios, sob a figura alegórica da “virgem filha de Babilônia, filha dos caldeus.” (Vers. 1.) Ele diz que os encantadores não impedirão a ruína de sua monarquia. No capítulo seguinte, ele se dirige diretamente aos israelitas.
“Vinde aqui, vós, filhos de uma adivinha, raça de um homem adúltero e de uma mulher prostituída. — De quem troçastes? Contra quem abristes a boca, e lançastes vossas línguas penetrantes? Não sois filhos pérfidos e rebentos bastardos, — vós que procurais vosso consolo em vossos deuses debaixo de todas as árvores carregadas de folhagens, que sacrificais vossas criancinhas nas torrentes sob as rochas proeminentes? — Pusestes vossa confiança nas pedras da torrente; espalhastes licores para venerá-las; ofereceste-lhes sacrifícios. Depois disso, minha indignação não se inflamará?” (Cap. LVII, vv. 3, 4, 5, 6.)
Estas palavras são inequívocas; provam claramente que, naquele tempo, as evocações tinham por finalidade a adivinhação, e que se fazia comércio delas; estavam associadas às práticas da magia e da bruxaria, e mesmo acompanhadas de sacrifícios humanos. Moisés tinha portanto razão de proibir essas coisas, e de dizer que Deus as tinha em abominação. Essas práticas supersticiosas se perpetuaram até a Idade Média; mas hoje a razão lhes fez justiça, e o Espiritismo veio mostrar a finalidade exclusivamente moral, consoladora e religiosa das relações de além-túmulo; uma vez que os espíritas não “sacrificam as criancinhas e não espalham licores para venerar os deuses,” não interrogam nem os astros, nem os mortos, nem os augúrios para conhecer o futuro que Deus sabiamente escondeu aos homens; repudiam todo tráfico da faculdade que alguns receberam de comunicar-se com os Espíritos; não são movidos nem pela curiosidade, nem pela cupidez, mas por um sentimento piedoso e unicamente pelo desejo de se instruir, de se aperfeiçoar e de aliviar as almas sofredoras, a proibição de Moisés, pois, não lhes diz respeito de maneira nenhuma; é o que teriam visto aqueles que a invocam contra eles, se tivessem aprofundado melhor o sentido das palavras bíblicas; teriam reconhecido que não existe nenhuma analogia entre o que ocorria entre os hebreus e os princípios do Espiritismo; muito mais: que o Espiritismo condena precisamente o que motivava a proibição de Moisés; mas, cegos pelo desejo de encontrar um argumento contra as ideias novas, eles não se aperceberam de que esse argumento não se sustenta.
A lei civil atual pune todos os abusos que Moisés queria reprimir. Se Moisés pronunciou o supremo suplício contra os delinquentes, é porque precisava de meios rigorosos para governar aquele povo indisciplinado; assim a pena de morte é prodigada em sua legislação; não havia de resto grande escolha em seus meios de repressão; não havia prisões, nem casas de correção no deserto, e seu povo não era de natureza a temer penas puramente disciplinares; ele não podia graduar sua penalidade como se faz em nossos dias. É portanto injustamente que se considera a severidade do castigo para provar o grau de culpa da evocação dos mortos. Seria preciso por respeito à lei de Moisés manter a pena capital para todos os casos em que ele a aplicava? Por que, aliás, se faz reviver com tanta insistência este artigo, ao passo que não se fala do começo do capítulo que proíbe aos padres possuir os bens da terra, e ter parte em qualquer herança, porque o Senhor é ele próprio sua herança? (Deuteronômio, cap. XXVIII, vv. 1 e 2.)
5. Há duas partes distintas na lei de Moisés: a lei de Deus propriamente dita, promulgada no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar apropriada aos costumes e ao caráter do povo; uma é invariável, a outra se modifica de acordo com os tempos, e não pode vir ao pensamento de ninguém que possamos ser governados pelos mesmos meios que os hebreus no deserto, como também os capitulares de Carlos Magno não se poderiam aplicar à França do século dezenove. Quem sonharia, por exemplo, fazer reviver hoje este artigo da lei mosaica: “Se um boi ferir com seu chifre um homem ou uma mulher, e eles morrerem por isso, o boi será lapidado, e não se comerá sua carne; mas o dono do boi será julgado inocente.” (Êxodo, cap. XXI, v. 28 e seg.)
Este artigo, que nos parece tão absurdo, não tinha porém por objeto punir o boi e absolver seu dono; ele equivalia simplesmente ao confisco do animal, causa do acidente, para obrigar o proprietário a ser mais vigilante. A perda do boi era a punição do dono, punição que devia ser bastante sensível para um povo pastor, para que não fosse necessário infligir-lhe outra; mas ela não devia beneficiar ninguém, por isso era proibido comer-lhe a carne. Outros artigos estipulam o caso em que o dono é responsável.
Tudo tinha sua razão de ser na legislação de Moisés, pois tudo está aí previsto até nos menores detalhes; mas a forma assim como o fundo eram segundo as circunstâncias em que ele se achava. Decerto, se Moisés voltasse hoje para dar um código a uma nação civilizada da Europa, não lhe daria o dos hebreus.
Não veio Jesus modificar a lei mosaica, e não é sua lei o código dos cristãos? Não disse ele: “Aprendestes que foi dito aos antigos tal e qual coisa, e eu vos digo tal outra coisa?” Mas tocou ele na lei do Sinai? De modo nenhum; ele a sanciona, e toda sua doutrina moral não é senão o desenvolvimento daquela. Ora, ele não fala em nenhum lugar da proibição de evocar os mortos. Era porém uma questão bastante grave, para que ele a tivesse omitido em suas instruções, enquanto tratou de outras mais secundárias.
8. Outra contradição. Se Moisés proibiu evocar os Espíritos dos mortos, é portanto porque esses Espíritos podem vir, de outro modo sua proibição teria sido inútil. Se eles podiam vir no tempo dele, ainda o podem hoje; se são os Espíritos dos mortos, então não são exclusivamente demônios. De resto, Moisés não fala absolutamente destes últimos.
Logo, é evidente que não se poderia logicamente apoiar-se na lei de Moisés nesta circunstância, pelo duplo motivo de que ela não rege o Cristianismo, e não é apropriada aos costumes da nossa época. Mas, supondo-lhe toda a autoridade que alguns lhe concedem, ela não pode, assim como vimos, aplicar-se ao Espiritismo.
Moisés, é verdade, engloba a interrogação dos mortos na sua proibição; mas é apenas de maneira secundária, e como acessório das práticas da magia. A própria palavra interrogar, posta ao lado dos adivinhos e dos augúrios, prova que, entre os hebreus, as evocações eram um meio de adivinhação; ora, os espíritas não evocam os mortos para obter deles revelações ilícitas, mas para receber sábios conselhos e obter alívio para os que sofrem. Decerto, se os hebreus se tivessem servido das comunicações de além-túmulo unicamente com esse objetivo, longe de proibi-las, Moisés as teria encorajado, porque elas teriam tornado seu povo mais dócil.
Quando a evocação é feita religiosamente e com recolhimento; quando os Espíritos são chamados, não por curiosidade, mas por um sentimento de afeição e de simpatia, e com o desejo sincero de se instruir e de se tornar melhor, não vemos o que haveria de mais desrespeitoso em chamar as pessoas após sua morte do que enquanto vivas. Mas há outra resposta peremptória a esta objeção, é que os Espíritos vêm livremente e não por coerção; que eles vêm mesmo espontaneamente sem ser chamados; que eles testemunham sua satisfação de se comunicar com os homens, e se queixam com frequência do esquecimento em que por vezes são deixados. Se fossem perturbados em sua quietude ou ficassem descontentes com nosso chamado eles o diriam, ou não viriam. Visto que são livres, quando vêm, é que isso lhes convém.
13. Que os incrédulos neguem a manifestação das almas, isso se concebe, visto que não creem na alma; mas o que é estranho é ver aqueles cujas crenças repousam sobre sua existência e seu futuro, se encarniçarem contra os meios de provar que ela existe, e esforçarem-se por demonstrar que isso é impossível. Pareceria natural, ao contrário, que aqueles que mais têm interesse na sua existência devessem acolher com alegria, e como um benefício da Providência, os meios de confundir os negadores por provas irrefutáveis, visto que são os negadores da religião. Eles deploram sem cessar a invasão da incredulidade que dizima o rebanho dos fiéis, e quando o meio mais poderoso de combatê-la se apresenta, eles o repelem com mais obstinação do que os próprios incrédulos. Depois, quando as provas transbordam a ponto de não deixar nenhuma dúvida, recorre-se, como argumento supremo, à proibição de se ocupar disso, e para justificá-la vai-se buscar um artigo da lei de Moisés, com que ninguém nem sonhava, e onde se quer ver, por toda força, uma aplicação que não existe. Fica-se tão contente com esta descoberta, que não se percebe que esse artigo é uma justificação da doutrina espírita.
O culto que estiver na verdade absoluta não terá nada a temer da luz, pois a luz fará sobressair a verdade, e o demônio não poderia prevalecer contra a verdade.
15. Repelir as comunicações de além-túmulo é rejeitar o poderoso meio de instrução que resulta para si mesmo da iniciação à vida futura, e dos exemplos que elas nos fornecem. Ensinando-nos a experiência, além disso, o bem que se pode fazer afastando do mal os Espíritos imperfeitos, ajudando os que sofrem a se libertar da matéria e a se melhorar, proibi-las é privar almas infelizes da assistência que lhes podemos dar. As seguintes palavras de um Espírito resumem admiravelmente as consequências da evocação praticada com um objetivo caridoso:
“Cada Espírito sofredor e queixoso vos contará a causa de sua queda, os arrastamentos a que sucumbiu; ele vos falará de suas esperanças, seus combates, seus terrores; ele vos contará seus remorsos, suas dores, seus desesperos; ele vos mostrará Deus, justamente irritado, punindo o culpado com toda a severidade de sua justiça.
Escutando-o, ficareis tomados de compaixão por ele e de temor por vós mesmos; seguindo-o em suas queixas, vereis Deus não o perdendo de vista, aguardando o pecador arrependido, estendendo-lhe os braços tão logo ele tente avançar. Vereis os progressos do culpado, para os quais tereis a felicidade e a glória de ter contribuído; vós os acompanhareis com solicitude, como o cirurgião acompanha os progressos do ferimento que ele trata diariamente.” (Bordeaux, 1861.)
Segunda parte — Exemplos
Capítulo I — A passagem
E por que isso? Porque falta a ambas o conhecimento das leis que regem as relações do espírito e da matéria; uma se detém no limiar da vida espiritual, a outra no da vida material. O Espiritismo é o traço de união entre as duas; só ele pode dizer como se opera a transição, quer pelas noções mais positivas que ele dá da natureza da alma, quer pelo relato daqueles que deixaram a vida. O conhecimento do laço fluídico que une a alma e o corpo é a chave deste fenômeno, como de muitos outros.
Disto resulta que o sofrimento, que acompanha a morte, está subordinado à força de aderência que une o corpo e o perispírito; que tudo o que pode ajudar na diminuição dessa força e na rapidez do desprendimento torna a passagem menos penosa; por fim, que se o desprendimento se opera sem nenhuma dificuldade, a alma não experimenta nenhuma sensação desagradável.
8. O estado moral da alma é a causa principal que influi sobre a maior ou menor facilidade do desprendimento. A afinidade entre o corpo e o perispírito é proporcional ao apego do Espírito à matéria; ela atinge seu máximo no homem cujas preocupações se concentram todas na vida e nos gozos materiais; é quase inexistente naquele cuja alma purificada se identificou por antecipação com a vida espiritual. Visto que a lentidão e a dificuldade da separação são proporcionais ao grau de purificação e de desmaterialização da alma, depende de cada um tornar essa passagem mais ou menos fácil ou penosa, agradável ou dolorosa.
Posto isto, ao mesmo tempo como teoria e como resultado de observação, resta-nos examinar a influência do gênero de morte sobre as sensações da alma no último momento.
No homem material e sensual, aquele que viveu mais pelo corpo do que pelo espírito, para quem a vida espiritual não é nada, nem mesmo uma realidade em seu pensamento, tudo contribuiu para apertar os laços que o prendem à matéria; nada veio afrouxá-los durante a vida. Com a aproximação da morte, o desprendimento se opera também por graus, mas com esforços contínuos. As convulsões da agonia são o indício da luta travada pelo Espírito que por vezes quer romper os laços que lhe resistem, e outras vezes se agarra a seu corpo do qual uma força irresistível o arranca violentamente, parte por parte.
11. Bem diferente é a posição do Espírito desmaterializado, mesmo nas doenças mais cruéis. Sendo muito fracos os laços fluídicos que o unem ao corpo, eles se rompem sem nenhum abalo; depois, sua confiança no futuro, que ele já entrevê pelo pensamento, e às vezes mesmo em realidade, o faz encarar a morte como uma libertação e seus males como uma prova; daí, para ele, uma calma moral e uma resignação que aliviam o sofrimento. Depois da morte, sendo esses laços instantaneamente rompidos, nenhuma reação dolorosa se opera nele; ele se sente, ao despertar, livre, disposto, aliviado de um grande peso, e muito alegre por não mais sofrer.
O espírita sério não se limita a crer; ele crê porque compreende, e ele compreende porque nos dirigimos ao seu julgamento; a vida futura é uma realidade que se desenrola incessantemente a seus olhos; ele a vê e a toca por assim dizer em todos os instantes; a dúvida não pode entrar na sua alma. A vida corporal tão limitada se apaga para ele diante da vida espiritual que é a verdadeira vida; daí o pouco caso que ele faz dos incidentes do caminho, e sua resignação nas vicissitudes de que ele compreende a causa e a utilidade. Sua alma se eleva pelas relações diretas que ele mantém com o mundo invisível; os laços fluídicos que o ligam à matéria se enfraquecem, e assim se opera um primeiro desprendimento parcial que facilita a passagem desta vida à outra. A perturbação inseparável da transição é de curta duração, porque, tão logo dado o passo, ele se reconhece; nada lhe é estranho; ele se dá conta de sua situação.
* Os exemplos que vamos citar apresentam os Espíritos nas diferentes fases de bem-aventurança e de desgraça da vida espiritual. Não fomos buscá-los nos personagens mais ou menos ilustres da antiguidade, cuja posição pôde mudar consideravelmente desde a existência que conhecemos deles, e que não ofereceriam, aliás, provas suficientes de autenticidade. Nós os extraímos das circunstâncias mais corriqueiras da vida contemporânea, porque são aquelas em que cada um pode encontrar mais semelhanças, e das quais se podem tirar as instruções mais proveitosas pela comparação. Quanto mais a existência terrestre dos Espíritos se aproxima de nós, pela posição social, as relações ou os laços de parentesco, mais eles nos interessam, e mais fácil é controlar a identidade deles. As posições comuns são as da maioria, é por isso que cada um pode fazer mais facilmente a aplicação delas; as posições excepcionais tocam menos, porque saem da esfera de nossos hábitos. Não são portanto as celebridades que nós buscamos; se, nestes exemplos, se acham algumas individualidades conhecidas, a maioria é completamente obscura; nomes retumbantes não teriam acrescentado nada à instrução e poderiam ter ferido susceptibilidades. Não nos dirigimos nem aos curiosos nem aos apreciadores de escândalo, mas àqueles que querem seriamente instruir-se.
Estes exemplos poderiam multiplicar-se ao infinito; mas, forçado a limitar seu número, escolhemos aqueles que podiam lançar mais luz sobre o estado do mundo espiritual, quer pela posição do Espírito, quer pelas explicações que ele era capaz de dar. A maioria deles é inédita; somente alguns já foram publicados na Revista espírita; suprimimos destes os detalhes supérfluos, não conservando senão as partes essenciais à finalidade que nos propomos aqui, e acrescentamos-lhes as instruções complementares que ocasionaram ulteriormente.
Capítulo II — Espíritos felizes
Sr. Sanson
O Sr. Sanson, antigo membro da Sociedade Espírita de Paris, morreu no dia 21 de abril de 1862, depois de um ano de cruéis sofrimentos. Prevendo seu fim, ele dirigira ao presidente da Sociedade uma carta contendo a passagem seguinte:
“Em caso de surpresa pela desagregação de minha alma e de meu corpo, tenho a honra de vos relembrar um pedido que vos fiz há cerca de um ano; evocar meu Espírito o mais imediatamente possível e com a maior frequência que julgardes apropriada, a fim de que, membro assaz inútil de nossa Sociedade durante minha presença na terra, eu lhe possa servir de alguma coisa no além-túmulo, dando-lhe os meios de estudar fase por fase, nessas evocações, as diversas circunstâncias que se seguem ao que o vulgo chama de morte, mas que, para nós, espíritas, não é senão uma transformação, segundo os desígnios impenetráveis de Deus, mas sempre útil à finalidade que ele se propõe.
“Além desta autorização e pedido para me fazerem a honra dessa espécie de autópsia espiritual, que meu avanço demasiado pouco tornará talvez estéril, caso em que vossa sabedoria vos conduzirá naturalmente a não levar além de um certo número de tentativas, ouso pedir-lhes pessoalmente, assim como a todos os meus colegas, de ter a bondade de suplicar ao Onipotente que permita aos bons Espíritos assistir-me com seus conselhos benevolentes, em particular São Luís, nosso presidente espiritual, com a finalidade de me guiar na escolha e sobre a época de uma reencarnação; pois, desde já, isso me ocupa muito; temo enganar-me sobre minhas forças espirituais, e pedir a Deus, cedo demais, e presunçosamente demais, um estado corporal no qual eu não poderia justificar a bondade divina, o que, em vez de servir para meu avanço, prolongaria minha estada na terra ou em outro lugar, no caso de eu falhar.”
Para nos conformarmos ao seu desejo de ser evocado o mais cedo possível depois de sua morte, fomos à casa mortuária com alguns membros da Sociedade, e, na presença do corpo, a conversa seguinte ocorreu uma hora antes da inumação. Tínhamos aí um duplo objetivo, o de cumprir uma última vontade, e o de observar uma vez mais a situação da alma num momento tão próximo da morte, e isso num homem eminentemente inteligente e esclarecido, e profundamente penetrado das verdades espíritas; tínhamos que constatar a influência dessas crenças sobre o estado do Espírito, a fim de perceber suas primeiras impressões. Nossa expectativa não se enganou; o Sr. Sanson descreveu com perfeita lucidez o instante da transição; ele se viu morrer e se viu renascer, circunstância pouco comum, e que se devia à elevação de seu Espírito.
I
(Câmara mortuária, 23 de abril de 1862.)
1. Evocação. - Venho ao vosso apelo para cumprir minha promessa.
2. Meu caro senhor Sanson, é para nós um dever e um prazer evocar-vos o mais cedo possível depois de vossa morte, assim como desejastes. – R. É uma graça especial de Deus que permite ao meu Espírito poder se comunicar; agradeço-vos vossa boa vontade; mas estou fraco e tremo.
3. Estáveis tão doente que podemos, penso eu, perguntar-vos como estais agora. Ainda sentis dores? Que sensação experimentais comparando vossa situação presente com a de há dois dias? – R. Minha posição é bem feliz, pois não sinto mais nada de minhas antigas dores; estou regenerado e novo em folha, como dizeis aí. A transição da vida terrestre à vida dos Espíritos tinha no início tornado tudo incompreensível para mim, pois ficamos às vezes vários dias sem recuperar nossa lucidez; mas, antes de morrer, fiz uma prece a Deus e lhe pedi para poder falar com aqueles que amo, e Deus ouviu-me.
4. Ao fim de quanto tempo recuperastes a lucidez de vossas ideias? – R. Ao fim de oito horas; Deus, repito-vos, me dera um sinal de sua bondade; ele me julgara suficientemente digno, e nunca poderei agradecer-lhe o bastante.
5. Estais bem certo de não ser mais do nosso mundo, e em que o constatais? – R. Oh! Decerto que não, não sou mais do vosso mundo; mas estarei sempre perto de vós para vos proteger e apoiar, a fim de pregar a caridade e a abnegação que foram os guias da minha vida; e depois, ensinarei a fé verdadeira, a fé espírita, que deve reerguer a crença do justo e do bom; estou forte e muito forte, transformado, numa palavra; vós não reconheceríeis mais o velhote enfermo que devia esquecer tudo, deixando longe de si todo prazer, toda alegria. Sou Espírito; minha pátria é o espaço, e meu futuro, Deus, que irradia na imensidão. Gostaria muito de poder falar com meus filhos, pois lhes ensinaria tudo aquilo que eles sempre tiveram a má vontade de não acreditar.
6. Que efeito vos faz experimentar a visão de vosso corpo, aqui ao lado? – R. Meu corpo, pobre e ínfimo resto mortal, tu deves ir para o pó, e eu guardo a boa recordação de todos aqueles que me estimavam. Olho essa pobre carne deformada, morada do meu espírito, prova de tantos anos! Obrigado, meu pobre corpo! Purificaste meu Espírito, e o sofrimento dez vezes santo deu-me um lugar bem merecido, visto que encontro imediatamente a faculdade de vos falar.
7. Conservastes vossas ideias até o último momento? – R. Sim, meu Espírito conservou suas faculdades; eu não via mais, mas pressentia; toda a minha vida se desenrolou diante da minha recordação, e meu último pensamento, minha última prece foi poder falar-vos, o que estou fazendo; e depois pedi a Deus que vos protegesse, a fim de que o sonho da minha vida
fosse realizado.
8. Tivestes consciência do momento em que vosso corpo deu o último suspiro? O que se passou convosco nesse momento? Que sensação experimentastes? – R. A vida se rompe e a visão, ou melhor, a visão do Espírito se extingue; encontra-se o vazio, o desconhecido, e, levado por não sei qual prestígio, encontramo-nos num mundo onde tudo é alegria e grandeza. Eu não sentia mais, não me dava conta, no entanto uma felicidade inefável me plenificava; não sentia mais o peso da dor.
9. Tendes conhecimento... (do que me proponho a ler sobre vosso túmulo?)
Observação: Mal as primeiras palavras da pergunta foram pronunciadas e o Espírito responde antes de acabar. Ademais, ele responde, e sem pergunta formulada, a uma discussão que se levantara entre os assistentes, sobre a oportunidade de ler essa comunicação no cemitério, devido às pessoas que poderiam não compartilhar essas opiniões.
R. Oh! Meu amigo, eu o sei, pois vos vi ontem, e vejo-vos hoje; minha satisfação é bem grande!...Obrigado! obrigado! Falai, a fim de que me compreendam e que vos estimem! Não temais nada, pois respeita-se a morte; falai portanto, a fim de que os incrédulos tenham fé. Adeus; falai; coragem, confiança, e que meus filhos possam se converter a uma crença reverenciada!
J. SANSON.
Durante a cerimônia do cemitério, ele ditou as palavras seguintes:
Que a morte não vos apavore, meus amigos; ela é uma etapa para vós, se soubestes bem viver; ela é uma bem-aventurança, se houverdes merecido dignamente e cumprirdes bem vossas provas. Repito-vos: Coragem e boa vontade! Não atribuais senão um valor medíocre aos bens da terra, e sereis recompensados; não se pode gozar demasiado, sem privar outros do bem-estar, e sem se fazer moralmente um mal imenso. Que a terra me seja leve!II
II
(Sociedade Espírita de Paris, 25 de abril de 1862.)
1. Evocação. – R. Meus amigos, estou perto de vós.
2. Estamos muito felizes pela conversa que tivemos convosco no dia do vosso sepultamento, e visto que vós o permitis, ficaremos encantados de completá-la para nossa instrução. – R. Estou completamente preparado, feliz que penseis em mim.
3. Tudo aquilo que pode nos esclarecer sobre o estado do mundo invisível e fazer-nos compreendê-lo é um alto ensinamento, porque é a ideia falsa que se faz dele que conduz quase sempre à incredulidade. Não fiqueis então surpreendido com as perguntas que poderemos dirigir-vos. – R. Não ficarei espantado, e espero vossas perguntas.
4. Vós descrevestes com uma luminosa claridade a passagem da vida à morte; dissestes que no momento em que o corpo dá o último suspiro, a vida se rompe, e a vista do Espírito se extingue. Esse momento é acompanhado por uma sensação penosa, dolorosa? – R. Sem dúvida, pois a vida é uma sucessão contínua de dores, e a morte é o complemento de todas as dores; daí um dilaceramento violento, como se o Espírito tivesse de fazer um esforço sobre-humano para escapar de seu invólucro, e é esse esforço que absorve todo nosso ser e lhe faz perder o conhecimento do que ele se torna.
Observação: Esse caso não é geral. A experiência prova que muitos Espíritos desmaiam antes de expirar, e que naqueles que chegaram a um certo grau de desmaterialização, a separação se opera sem esforços.
5. Sabeis se há Espíritos para os quais esse momento é mais doloroso? Ele é mais penoso, por exemplo, para o materialista, para aquele que acredita que tudo acaba nesse momento para ele? – R. Isso é certo, pois o Espírito preparado já esqueceu o sofrimento, ou melhor, ele está habituado a ele, e a quietude com a qual vê a morte impede-o de sofrer duplamente, porque sabe o que o aguarda. A pena moral é a mais forte, e sua ausência no instante da morte é um alívio bem grande. Aquele que não crê parece-se com o condenado à pena capital e cujo pensamento vê a faca e o desconhecido. Há semelhança entre essa morte e a do ateu.
6. Há materialistas bastante endurecidos para crer seriamente, nesse momento supremo, que vão ser mergulhados no nada? –
R. Sem dúvida, até a última hora há os que creem no nada; mas, no momento da separação, o Espírito tem um retorno profundo; a dúvida toma conta dele e tortura-o, pois ele se pergunta o que se vai tornar; ele quer perceber algo e não pode. A separação não se pode fazer sem essa impressão. Observação: Um Espírito nos deu, numa outra circunstância, o seguinte quadro do fim do incrédulo:
“O incrédulo endurecido experimenta nos últimos momentos as angústias desses pesadelos terríveis onde se está à beira de um precipício, prestes a cair no abismo; fazem-se inúteis esforços para fugir, e não se pode andar; quer-se agarrar-se a algo, alcançar um ponto de apoio, e sente-se escorregar; quer-se chamar e não se consegue articular nenhum som; é então que se vê o moribundo torcer, crispar as mãos e dar gritos abafados, sinais certos do pesadelo do qual é presa. No pesadelo comum, o despertar tira-vos da agitação, e vós vos sentis felizes por reconhecer que era só um sonho; mas o pesadelo da morte se prolonga frequentemente por muito tempo, até anos, além da morte, e o que torna a sensação ainda mais penosa para o Espírito, são as trevas em que por vezes ele está mergulhado.”
7. Dissestes que no momento de morrer não víeis mais, mas que pressentíeis. Não víeis mais corporalmente, isso se compreende; mas, antes que a vida se extinguisse, entrevíeis já a claridade do mundo dos Espíritos?
– R. É o que eu disse anteriormente: o instante da morte dá a clarividência ao Espírito; os olhos não veem mais, mas o Espírito, que possui uma visão bem mais profunda, descobre instantaneamente um mundo desconhecido, e aparecendo-lhe subitamente a verdade, dá-lhe, momentaneamente é certo, ou uma alegria profunda, ou uma dor inexprimível, segundo o estado de sua consciência e a recordação de sua vida passada. Observação: Trata-se do instante que precede aquele em que o Espírito perde conhecimento, o que explica o emprego da palavra momentaneamente, pois as mesmas impressões agradáveis ou penosas continuam ao despertar.
8. Tende a bondade de nos dizer o que, no instante em que vossos olhos se reabriram à luz, vos impressionou, o que vistes. Tende a bondade de nos descrever, se for possível, o aspecto das coisas que se ofereceram a vós.
– R. Assim que pude voltar a mim, e ver o que tinha diante dos olhos, estava como ofuscado, e não me dava conta, porque a lucidez não volta instantaneamente. Mas Deus, que me deu um sinal profundo de sua bondade, permitiu que eu recuperasse minhas faculdades. Vi-me rodeado de inúmeros e fiéis amigos. Todos os Espíritos protetores que vêm nos assistir, me rodeavam e me sorriam; uma felicidade sem igual os animava, e eu mesmo, forte e de boa saúde, podia, sem esforço, me transportar através do espaço. O que eu vi não tem nome nas línguas humanas.
Virei, ademais, falar-vos mais amplamente de todas as minhas venturas, sem ultrapassar porém o limite que Deus exige. Sabei que a felicidade, tal como a entendeis entre vós, é uma ficção. Vivei sabiamente, santamente, no espírito de caridade e de amor, e tereis preparado para vós impressões que vossos maiores poetas não saberiam descrever.
Observação: Os contos de fadas estão sem dúvida cheios de coisas absurdas; mas não seriam eles, em alguns pontos, a pintura do que acontece no mundo dos Espíritos? Não se parece o relato do Sr. Sanson com o de um homem que, adormecido numa pobre e obscura cabana, despertasse num palácio esplêndido, no meio de uma corte brilhante?
III
9. Com que aspecto os Espíritos se apresentaram a vós? Com o da forma humana?
– R. Sim, meu caro amigo, os Espíritos nos haviam ensinado na terra que eles conservavam no outro mundo a forma transitória que tinham tido na terra, e é a verdade. Mas que diferença entre a máquina informe que se arrasta penosamente com seu cortejo de provas, e a fluidez maravilhosa do corpo dos Espíritos! A feiura não existe mais, pois os traços perderam a dureza de expressão que forma o caráter distintivo da raça humana. Deus beatificou todos aqueles corpos graciosos, que se movem com todas as elegâncias da forma; a linguagem tem entonações intraduzíveis para vós, e o olhar tem a profundidade de uma estrela. Tentai, pelo pensamento, ver o que Deus pode fazer na sua onipotência, ele que é o arquiteto dos arquitetos, e tereis uma fraca ideia da forma dos Espíritos.
10. Quanto a vós, como vos vedes? Reconheceis em vós uma forma limitada, circunscrita, embora fluídica? Sentis em vós uma cabeça, um tronco, braços, pernas? – R. O Espírito, tendo conservado sua forma humana, mas divinizada, idealizada, tem, sem contradita, todos os membros de que falais. Sinto em mim perfeitamente pernas e dedos, pois podemos, por nossa vontade, aparecer-vos ou pressionar-vos as mãos. Estou perto de vós e apertei a mão de todos os meus amigos, sem que eles tivessem tido consciência disso; nossa fluidez pode estar em toda parte sem obstruir o espaço, sem dar nenhuma sensação, se for esse o nosso desejo. Neste momento, vós estais de mãos cruzadas e eu tenho as minhas nas vossas. Digo-vos: eu vos amo, mas meu corpo não ocupa lugar, a luz o atravessa, e o que chamaríeis um milagre, se ele fosse visível, é para os Espíritos a ação contínua de todos os instantes.
A visão dos Espíritos não tem relação com a visão humana, assim como seu corpo não tem semelhança real, pois tudo é alterado no conjunto e no fundo. O Espírito, repito-vos, tem uma perspicácia divina que se estende a tudo, visto que pode adivinhar mesmo vosso pensamento; também pode, apropriadamente, tomar a forma que melhor pode trazê-lo de volta às vossas recordações. Mas, de fato, o Espírito superior que acabou suas provas, gosta da forma que pôde conduzi-lo para perto de Deus.
11. Os Espíritos não têm sexo; no entanto, como ainda há poucos dias é reis homem, tendes em vosso novo estado mais da natureza masculina que da natureza feminina? Acontece o mesmo a um Espírito que tivesse deixado seu corpo há muito tempo?
– R. Não fazemos questão de ser de natureza masculina ou feminina: os Espíritos não se reproduzem. Deus cria-os à sua vontade, e se, para seus desígnios maravilhosos, ele quis que os Espíritos se reencarnem na terra, ele precisou acrescentar a reprodução das espécies pelo macho e a fêmea. Mas, vós o sentis, sem que seja preciso nenhuma explicação, os Espíritos não podem ter sexo. Observação: Sempre foi dito que os Espíritos não têm sexo; os sexos não são necessários senão para a reprodução dos corpos; pois não se reproduzindo os Espíritos, os sexos seriam para eles inúteis. Nossa pergunta não tinha o objetivo de constatar o fato, mas devido à morte recente do Sr. Sanson, queríamos saber se lhe restava uma impressão de seu estado terrestre. Os Espíritos purificados dão-se perfeitamente conta de sua natureza, mas entre os Espíritos inferiores, não desmaterializados, há muitos que creem ser ainda o que eram na terra, e conservam as mesmas paixões e os mesmos desejos; estes últimos se creem ainda homens ou mulheres, e eis porque há os que disseram que os Espíritos têm sexos. É assim que certas contradições provêm do estado mais ou menos avançado dos Espíritos que se comunicam; o erro não é dos Espíritos, mas daqueles que os interrogam e não se dão ao trabalho de aprofundar as questões.
12. Que aspecto vos apresenta a sessão? É ela para vossa nova visão o que vos parecia durante a vida? As pessoas têm para vós a mesma aparência? Tudo é igualmente claro, igualmente nítido?
– R. Bem mais claro, pois posso ler no pensamento de todos, e estou bem feliz pela boa impressão que me deixa a boa vontade de todos os Espíritos reunidos. Desejo que o mesmo entendimento possa existir não só em Paris, pela reunião de todos os grupos, mas também em toda a França, onde grupos se separam e se invejam, impelidos por Espíritos trapalhões que gozam com a desordem, enquanto o Espiritismo deve ser o esquecimento completo, absoluto do eu.
13. Dizeis que ledes em nosso pensamento; poderíeis fazer-nos compreender como se opera essa transmissão de pensamento?
– R. Isso não é fácil; para vos dizer, vos explicar esse prodígio singular da visão dos Espíritos, seria preciso abrir-vos todo um arsenal de agentes novos, e seríeis tão sábios quanto nós, o que não é possível, visto que vossas faculdades são limitadas pela matéria. Paciência! Tornai-vos bons, e chegareis lá; não tendes atualmente senão o que Deus vos concede, mas com a esperança de progredir continuamente; mais tarde sereis como nós. Tentai então morrer bem para saber muito. A curiosidade, que é o estimulante do homem pensante, vos conduz tranquilamente até a morte, reservando-vos a satisfação de todas as vossas curiosidades passadas, presentes e futuras.
Enquanto se espera, dir-vos-ei para responder bem ou mal à vossa questão: O ar que vos rodeia, impalpável como nós, leva o caráter de vosso pensamento; o hálito que exalais é, por assim dizer, a página escrita de vossos pensamentos; eles são lidos, comentados pelos Espíritos que se chocam convosco incessantemente; eles são os mensageiros de uma telegrafia divina a que nada escapa.
A morte do Justo
Após a primeira evocação do Sr. Sanson, feita na Sociedade de Paris, um Espírito deu, com esse título, a comunicação seguinte:
A morte do homem do qual vos ocupais neste momento foi a do justo; ou seja, acompanhada de calma e de esperança. Como o dia sucede naturalmente à aurora, a vida espírita sucedeu para ele à vida terrestre, sem abalo, sem dilaceramento, e seu último suspiro se exalou num hino de reconhecimento e de amor. Quão poucos atravessam assim essa rude passagem! Quão poucos, após a embriaguez e os desesperos da vida, concebem o ritmo harmonioso das esferas! Assim como o homem saudável, mutilado por uma bala, ainda tem dor nos membros dos quais está separado, assim a alma do homem que morre sem fé e sem esperança, se dilacera e palpita escapando do corpo, e lançando-se, inconsciente de si mesma, no espaço.
Rezai por essas almas perturbadas; rezai por tudo o que sofre; a caridade não se restringe à humanidade visível: ela socorre e consola também os seres que povoam o espaço. Tivestes a prova tocante disso pela conversão tão súbita desse Espírito enternecido pelas preces espíritas feitas no túmulo do homem de bem, que deveis interrogar, e que deseja vos fazer progredir no santo caminho. *
O amor não tem limites; ele preenche o espaço, dando e recebendo sucessivamente suas divinas consolações. O mar se desdobra numa perspectiva infinita; seu limite último parece confundir-se com o céu, e o Espírito fica deslumbrado pelo magnífico espetáculo dessas duas grandezas. Assim o amor, mais profundo do que as vagas, mais infinito do que o espaço, deve reunir-vos a todos, vivos e Espíritos, na mesma comunhão de caridade, e operar a admirável fusão do que é finito e do que é eterno.
GEORGES.
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* Alusão ao Espírito de Bernardo, que se manifestou espontaneamente no dia das exéquias do Sr. Sanson. (Ver a Revista de maio de 1862, p. 132.)
Sr. Jobard
Diretor do Museu da Indústria de Bruxelas; nascido em Baissey (Haute- Marne); morto em Bruxelas, de um ataque de apoplexia fulminante, em 27 de outubro de 1861, com a idade de sessenta e nove anos.
I
O Sr. Jobard era presidente honorário da Sociedade Espírita de Paris; pretendíamos evocá-lo na sessão de 8 de novembro, quando ele antecipou esse desejo dando espontaneamente a comunicação seguinte: Eis-me aqui, eu que iríeis evocar e que quero me manifestar primeiro a esse médium que solicitei em vão até agora.
Quero primeiro contar-vos minhas impressões no momento da separação da minha alma: senti um abalo extraordinário, lembrei-me subitamente de meu nascimento, minha juventude, minha idade madura; toda a minha vida me veio nitidamente à lembrança. Não sentia senão um piedoso desejo de me encontrar nas regiões reveladas pela nossa querida crença; depois, todo esse tumulto se apaziguou. Eu estava livre e meu corpo jazia inerte. Ah! meus caros amigos, que inebriante é tirar o peso do corpo! Que inebriante abarcar o espaço! Não acrediteis porém que eu me tenha tornado subitamente um eleito do Senhor; não, estou entre os Espíritos que, tendo abarcado um pouco, devem ainda aprender muito. Não tardei a me lembrar de vós, meus irmãos de exílio, e, asseguro-vos, toda a minha simpatia, todos os meus votos vos envolveram.
Quereis saber quais foram os Espíritos que me receberam? Quais foram minhas impressões? Meus amigos foram todos aqueles que evocamos, todos os irmãos que compartilharam nossos trabalhos. Eu vi o esplendor, mas não posso descrevê-lo. Apliquei-me a discernir o que era verdadeiro nas comunicações, pronto a corrigir todas as asserções errôneas; pronto, enfim, a ser o cavaleiro da verdade no outro mundo, como o fui no vosso.
Jobard.
1. Quando em vida, havíeis nos recomendado chamar-vos quando tivésseis deixado a terra; fazemo-lo, não só para nos conformarmos ao vosso desejo, mas sobretudo para vos renovar o testemunho de nossa viva e sincera simpatia, e também no interesse de nossa instrução, pois vós, melhor do que ninguém, sois capaz de nos dar informações precisas sobre o mundo em que vos encontrais. Ficaremos então felizes se aceitardes responder a nossas perguntas. – R. Nesta hora, o que importa mais é a vossa instrução. Quanto à vossa simpatia, eu a vejo, e não ouço mais sua expressão somente pelos ouvidos, o que constitui um grande progresso.
2. Para fixar nossas ideias, e não falar no vazio, perguntar-vos-emos primeiro em que lugar estais aqui, e como nós vos veríamos se vos pudéssemos ver? – R. Estou perto do médium; vós me veríeis na aparência do Jobard que se sentava à vossa mesa, pois vossos olhos mortais não abertos não podem ver os Espíritos a não ser em sua aparência mortal.
3. Teríeis a possibilidade de vos tornar visível para nós, e se não o podeis, o que se opõe a isso? – R. A disposição que vos é pessoal. Um médium vidente ver-me-ia: os outros não me veem.
4. Este lugar é o que ocupáveis quando vivo, quando assistíeis as nossas sessões, e que vos reservamos. Aqueles portanto que vos viram ali, devem imaginar vos ver ali tal como éreis então. Se não estais ali com vosso corpo material, estais com vosso corpo fluídico que tem a mesma forma; se não vos vemos com os olhos do corpo, vemos com os do pensamento; se não podeis vos comunicar pela fala, podeis fazê-lo pela escrita com a ajuda de um intérprete; nossas relações convosco não estão pois interrompidas de modo nenhum pela vossa morte, e podemos conversar convosco tão facilmente e tão completamente quanto outrora. É assim que as coisas acontecem? – R. Sim, e vós o sabeis há muito tempo. Este lugar, eu o ocuparei muitas vezes, e mesmo sem o vosso conhecimento, pois meu Espírito habitará entre vós.
Observação: Chamamos a atenção para esta última frase: “Meu Espírito habitará entre vós.” Na circunstância presente, não é uma figura, mas uma realidade. Pelo conhecimento que o Espiritismo nos dá da natureza dos Espíritos, sabe-se que um Espírito pode estar entre nós, não só pelo pensamento, mas em pessoa, com a ajuda de seu corpo etéreo, que faz dele uma individualidade distinta. Um Espírito pode portanto morar entre nós após a morte, tanto quanto quando seu corpo vivia; e melhor ainda, visto que pode vir e ir-se embora quando quer. Temos assim uma multidão de comensais invisíveis, uns indiferentes, outros que nos são apegados pela afeição; é sobretudo a estes últimos que se aplica esta frase: “Eles habitam entre nós”, que pode traduzir-se assim: Eles nos assistem, nos inspiram e nos protegem.
5. Não há muito tempo estáveis sentado nesse mesmo lugar; as condições em que estais agora vos parecem estranhas? Que efeito essa mudança produz em vós? – R. Estas condições não me parecem estranhas, pois meu Espírito desencarnado goza de uma nitidez que não deixa na sombra nenhuma das questões que ele encare.
6. Lembrais-vos de ter estado nesse mesmo estado antes de vossa última existência, e encontrais aí algo mudado? – R. Lembro-me de minhas existências anteriores, e acho que estou aperfeiçoado. Vejo e comparo-me ao que vejo. Na ocasião de minhas encarnações anteriores, Espírito perturbado, só me apercebia das lacunas terrestres.
7. Lembrais-vos de vossa penúltima existência, daquela que precedeu o Sr. Jobard? – R. Em minha penúltima existência eu era operário mecânico, roído pela miséria e o desejo de aperfeiçoar meu trabalho. Realizei, sendo Jobard, os sonhos do pobre operário, e louvo a Deus cuja bondade infinita fez germinar a planta cuja semente ele depositara no meu cérebro.
8. Já vos comunicastes em outro lugar? – R. Comuniquei-me pouco, ainda; em muitos lugares um Espírito tomou meu nome; às vezes eu estava perto dele sem poder fazê-lo diretamente; minha morte é tão recente que pertenço ainda a certas influências terrestres. É preciso uma perfeita simpatia para que eu possa expressar meu pensamento. Dentro em pouco, agirei indistintamente; ainda não o posso, repito. Quando um homem um pouco conhecido morre, é chamado de todos os lados; mil Espíritos se apressam a revestir sua individualidade; foi o que me aconteceu em várias circunstâncias. Asseguro-vos que logo depois da libertação, poucos Espíritos podem se comunicar, mesmo a um médium preferido.
9. Vedes os Espíritos que estão aqui conosco?
R. Vejo sobretudo Lázaro e Erasto; depois, mais afastado, o Espírito de verdade planando no espaço; depois uma multidão de Espíritos amigos que vos rodeiam, apressados e benevolentes. Ficai felizes, amigos, pois boas influências vos defendem das calamidades do erro.
10. Enquanto vivo, compartilháveis a opinião que foi emitida sobre a formação da terra pela incrustação de quatro planetas que teriam sido soldados juntos. Ainda tendes a mesma crença? – R. É um erro. As novas descobertas geológicas provam as convulsões da terra e sua formação sucessiva. A terra, como os outros planetas, teve sua vida própria, e Deus não teve necessidade dessa grande desordem ou dessa agregação de planetas. A água e o fogo são os únicos elementos orgânicos da terra.
11. Pensáveis também que os homens podiam entrar em catalepsia durante um tempo ilimitado, e que o gênero humano foi trazido dessa maneira para a terra? – R. Ilusão de minha imaginação, que ultrapassava sempre o alvo. A catalepsia pode ser longa, mas não indeterminada. Tradições, lendas aumentadas pela imaginação oriental. Meus amigos, sofri muito repassando as ilusões com as quais alimentei meu espírito: não vos enganeis. Eu aprendera muito, e, posso dizê-lo, minha inteligência, prestes a se apropriar desses vastos e diversos estudos, mantivera de minha última encarnação o amor do maravilhoso e do composto tirado das imaginações populares.
Ainda me ocupei pouco das questões puramente intelectuais no sentido em que vós o tomais. Como poderia eu, deslumbrado, arrastado como sou pelo maravilhoso espetáculo que me rodeia? O vínculo do Espiritismo, mais poderoso do que vós homens podeis conceber, é o único que pode atrair meu ser para essa terra que abandono, não com alegria, seria uma impiedade, mas com o profundo reconhecimento da libertação.
Por ocasião da subscrição aberta pela Sociedade em benefício dos operários de Lyon, em fevereiro de 1862, um membro entregou 50 francos, dos quais 25 por sua própria conta, e 25 em nome do Sr. Jobard. Este último deu a esse respeito a comunicação seguinte: Sinto-me orgulhoso e reconhecido por não ter sido esquecido entre meus irmãos espíritas. Obrigado ao coração generoso que vos trouxe a oferenda que eu vos teria dado se ainda morasse no vosso mundo. Neste em que habito agora, não se precisa de dinheiro; precisei, portanto, tirar da bolsa da amizade para dar provas materiais de que me tocava o infortúnio de meus irmãos de Lyon. Bravos trabalhadores, que ardentemente cultivais a vinha do Senhor, quanto deveis acreditar que a caridade não é uma palavra vã, visto que pequenos e grandes vos mostraram simpatia e fraternidade. Estais no grande caminho humanitário do progresso; possa Deus vos manter nele, e possais vós ser mais felizes; os Espíritos amigos vos apoiarão e triunfareis! Começo a viver espiritualmente, mais apaziguado e menos perturbado pelas evocações fora do caminho trilhado que choviam sobre mim. A moda reina mesmo sobre os espíritos; quando a moda Jobard der lugar a outra e eu entrar no nada do esquecimento humano, pedirei então aos meus amigos sérios, e entendo por isso aqueles cuja inteligência não esquece, pedir-lhes-ei que me evoquem; então aprofundaremos questões t ratadas demasiado superficialmente, e o vosso Jobard, completamente transfigurado, poderá vos ser útil, o que ele deseja de todo o coração. JOBARD.
Após os primeiros tempos dedicados a tranquilizar seus amigos, o Sr. Jobard obteve lugar reservado entre os Espíritos que trabalham ativamente na renovação social, aguardando seu próximo retorno ao meio dos vivos para aí participar mais diretamente. Desde essa época, ele deu frequentemente à Sociedade de Paris, da qual faz questão de continuar membro, comunicações de uma incontestável superioridade, sem renunciar à originalidade e aos ditos espirituosos que constituíam o fundo de seu caráter, e permitem reconhecê-lo antes que tenha dado sua assinatura.
Samuel Philippe.
Samuel Philippe é um homem de bem em todas as acepções da palavra; ninguém se lembrava de tê-lo visto cometer uma má ação, nem ter causado voluntariamente prejuízo a quem quer que seja. De um devotamento sem limites para com seus amigos, sempre se tinha certeza de encontrá-lo pronto quando se tratava de prestar um favor, mesmo a despeito de seus interesses. Penas, fadigas, sacrifícios, nada lhe custava para ser útil, e ele o fazia naturalmente, sem ostentação, espantando-se de que isso pudesse ser um mérito. Nunca quis mal àqueles que lhe haviam feito mal, e punha tanta solicitude a obsequiá-los como se lhe tivessem feito bem. Quando lidava com ingratos, dizia: “Não é a mim que se deve lamentar, mas a eles.” Embora muito inteligente e dotado de muito espírito natural, sua vida, toda de labor, fora obscura e semeada de rudes provas. Era uma dessas naturezas de elite que florescem à sombra, da qual ninguém fala, e cujo esplendor não se reflete na terra. Extraíra do conhecimento do Espiritismo uma fé ardente na vida futura e uma grande resignação aos males da vida terrestre. Morreu em dezembro de 1862, com a idade de 55 anos, em consequência de uma dolorosa doença, sinceramente lamentado por sua família e alguns amigos. Foi evocado vários meses após sua morte.
P. Tendes uma recordação nítida de vossos últimos instantes na terra? – R. Perfeitamente; essa recordação voltou-me pouco a pouco, pois naquele momento minhas ideias ainda eram confusas.
P. Gostaríeis, para nossa instrução e pelo interesse que vossa vida exemplar nos inspira, de descrever-nos como se efetuou para vós a passagem da vida corporal à vida espiritual, assim como vossa situação no mundo dos Espíritos? – R. De bom grado; esse relato não será bom apenas para vós, será também para mim. Transportando meus pensamentos à terra, a comparação me faz apreciar melhor ainda a bondade do Criador.
Sabeis de quantas tribulações minha vida foi semeada; nunca me faltou coragem na adversidade, graças a Deus! e hoje congratulo-me por isso. Quantas coisas teria perdido se tivesse cedido ao desalento! Tremo só de pensar que, por minha fraqueza, o que suportei teria sido sem proveito e teria que recomeçar. Ó meus amigos! Que vós possais vos penetrar desta verdade; dela depende vossa felicidade futura. Decerto não é caro demais pagar essa felicidade com alguns anos de sofrimento. Se soubésseis quão pouco são alguns anos ante o infinito!
Se minha última existência teve algum mérito aos vossos olhos, não teríeis dito o mesmo das que a precederam. Não foi senão à custa de trabalho sobre mim mesmo que fiz de mim o que sou agora. Para apagar os últimos traços de minhas faltas anteriores, precisava ainda suportar essas últimas provas que aceitei voluntariamente. Extraí da firmeza de minhas resoluções a força de suportá-las sem murmúrio. Hoje bendigo essas provas; por elas rompi com o passado, que é para mim apenas uma recordação, e posso doravante contemplar com legítima satisfação o caminho que percorri.
Ó vós que me fizestes sofrer na terra, que fostes duros e mal intencionados comigo, que me humilhastes e me mergulhastes na amargura,cuja má fé me reduziu muitas vezes às mais duras privações, não só eu vos perdoo, mas vos agradeço. Querendo fazer-me mal, não suspeitáveis de que me faríeis tanto bem. Porém, é verdade que é em grande parte a vós que devo a felicidade de que gozo, pois fornecestes-me a ocasião de perdoar e de pagar o mal com o bem. Deus colocou-vos no meu caminho para pôr à prova a minha paciência e me exercitar na prática da caridade mais difícil: a do amor por seus inimigos. Não vos impacienteis com esta digressão; chego ao que me perguntais.
Embora sofrendo cruelmente na minha última doença, não tive agonia; a morte veio, para mim, como o sono, sem luta, sem abalos. Não tendo apreensão quanto ao futuro, não me agarrei à vida; não tive, por conseguinte, de me debater com as últimas opressões; a separação operou-se sem esforços, sem dor, e sem que eu me tivesse apercebido. Ignoro quanto tempo durou esse último sono, mas foi curto. O despertar foi de uma calma que contrastava com meu estado anterior; não sentia mais dor e regozijava-me por isso; queria levantar-me, andar, mas um entorpecimento que não tinha nada de desagradável, que tinha mesmo certo encanto, me retinha, e eu me abandonava a ele com uma espécie de volúpia sem me dar conta de minha situação e sem suspeitar de que deixara a terra. O que me rodeava me aparecia como num sonho. Vi minha mulher e alguns amigos de joelhos no quarto e chorando, e disse-me que sem dúvida eles acreditavam que eu morrera; quis desenganá-los, mas não consegui articular nenhuma palavra, de onde concluí que sonhava. O que me confirmou nessa ideia foi ver-me rodeado por várias pessoas queridas, mortas há muito tempo, e outras que não reconheci imediatamente, e que pareciam velar por mim e aguardar meu despertar. Esse estado foi entremeado por instantes de lucidez e de sonolência, durante os quais eu recuperava e perdia alternadamente a consciência de meu eu. Pouco a pouco minhas ideias adquiriram mais nitidez; a luz que eu entrevia apenas através de um nevoeiro fez-se mais brilhante; então comecei a me reconhecer e compreendi que não pertencia mais ao mundo terrestre. Se não tivesse conhecido o Espiritismo, a ilusão se teria sem dúvida prolongado por muito mais tempo.
Meus restos mortais ainda não estavam sepultados; considerei-os com compaixão, congratulando-me por estar finalmente livre deles. Estava tão feliz por estar livre! Respirava à vontade como alguém que sai de uma atmosfera repugnante; uma indizível sensação de felicidade penetrava todo o meu ser; a presença daqueles que amara me enchia de alegria; não me surpreendia nada vê-los; parecia-me muito natural, mas parecia-me revê-los depois de uma longa viagem. Uma coisa me espantou no começo, era que nos compreendíamos sem articular nenhuma palavra; nossos pensamentos se transmitiam unicamente pelo olhar e como por uma penetração fluídica.
No entanto, ainda não estava completamente livre das ideias terrestres; a recordação do que eu suportara me voltava de tempos a tempos à memória, como para me fazer apreciar melhor minha nova situação. Eu sofrera corporalmente, mas sobretudo moralmente; fora presa da malevolência, dessas mil perplexidades mais penosas talvez do que as desgraças reais, porque elas causam uma ansiedade perpétua. A impressão delas não estava inteiramente apagada, e às vezes eu me perguntava se estava realmente desembaraçado delas; parecia-me ouvir ainda certas vozes desagradáveis; temia os embaraços que me tinham atormentado tantas vezes, e tremia contra vontade; eu me apalpava, por assim dizer, para me assegurar de que não era joguete de um sonho; e quando adquirira a certeza de que tudo aquilo acabara mesmo, parecia-me que um peso enorme me era retirado. É portanto bem verdade, dizia-me eu, que estou enfim livre de todas aquelas preocupações que fazem o tormento da vida, e dava graças a Deus por isso. Era como um pobre que ganha de repente uma grande fortuna; durante algum tempo, ele duvida da realidade e sente as apreensões da necessidade. Ó! se os homens compreendessem a vida futura, que força, que coragem essa convicção não lhes daria na adversidade! O que eles não fariam, enquanto estão na terra, para obter aí a felicidade que Deus reserva aos seus filhos que foram dóceis às suas leis! Veriam quão pouca coisa são os gozos que invejam comparados com os que negligenciam!
P. Esse mundo tão novo para vós, e perto do qual o nosso é tão pouca coisa, os inúmeros amigos que aí reencontrastes vos fizeram perder de vista a vossa família e os vossos amigos na terra? – R. Se eu os tivesse esquecido, seria indigno da felicidade de que gozo; Deus não recompensa o egoísmo, ele o pune. O mundo onde estou pode me fazer desdenhar a terra, mas não os Espíritos que aí estão encarnados. Só entre os homens é que se vê a prosperidade fazer esquecer os companheiros de infortúnio. Vou frequentemente rever os meus; fico feliz pela boa recordação que guardaram de mim; seu pensamento me atrai para eles; assisto às suas conversas, alegro-me com suas alegrias, suas penas me entristecem, mas não é essa tristeza ansiosa da vida humana, porque compreendo que elas são apenas passageiras e são para o bem deles. Fico feliz de pensar que um dia eles virão para esta morada afortunada onde a dor é desconhecida. É para torná-los dignos dela que me aplico; esforço-me para lhes sugerir bons pensamentos, e sobretudo a resignação que eu mesmo tive à vontade de Deus. Minha maior pena é quando os vejo retardar esse momento por sua falta de coragem, seus murmúrios, a dúvida sobre o futuro, ou por alguma ação repreensível. Tento então desviá-los do mau caminho; se consigo, é uma grande felicidade para mim, e todos nos regozijamos aqui; se fracasso, digo-me com pesar: Mais um atraso para eles; mas consolo-me pensando que nem tudo está irremediavelmente perdido.
VAN DURST.
Sixdeniers
Homem de bem, morto por acidente, e conhecido pelo médium durante a vida.
(Bordeaux, 11 de fevereiro de 1861.)
P. Podeis dar-me alguns detalhes sobre a vossa morte? – R. Uma vez afogado, sim. – P. Por que não antes? – R. Tu os conheces. (O médium conhecia-os efetivamente.) – P. Tende a bondade de me descrever então vossas sensações após a morte.
R. Fiquei muito tempo antes de me reconhecer, mas com a graça de Deus e a ajuda daqueles que me rodeavam, quando a luz se fez, fui inundado. Podes ter esperança: encontrarás sempre mais do que esperavas. Nada material; tudo impressiona os sentidos ocultos: o que nem o olho nem a mão podem tocar; compreendes-me? É uma admiração espiritual que ultrapassa vosso entendimento, porque não há palavras para explicá-lo: isso só se pode sentir com a alma.
Meu despertar foi bem feliz. A vida é um desses sonhos que, apesar da ideia grotesca que se atribui a essa palavra, só posso qualificar de horrendo pesadelo. Sonha que estás encerrada numa masmorra infecta, que teu corpo roído pelos vermes, que se introduzem até a medula dos ossos, está suspenso sobre uma fornalha ardente; que tua boca ressecada não encontra nem mesmo ar para refrescá-la; que teu Espírito horrorizado vê apenas à tua volta monstros prestes a devorar-te; imagina por fim tudo o que o fantástico do sonho pode gestar de mais hediondo, de mais horrível, e sente-te transportada subitamente para um Éden delicioso. Desperta cercada por todos aqueles que amaste e choraste; vê à tua volta seus rostos adorados te sorrirem felizes; respira os perfumes mais suaves, refresca tua garganta seca na água da nascente; sente teu corpo elevado no espaço infinito que o carrega e embala como faz a brisa com uma flor desprendida do alto de uma árvore; sente-te envolta pelo amor de Deus como a criança que nasce é envolvida pelo amor da mãe, e não terás senão uma ideia imperfeita dessa transição. Tentei explicar-te a felicidade da vida que espera o homem após a morte de seu corpo, mas não pude. Explica-se o infinito àquele que tem os olhos fechados para a luz e cujos membros nunca puderam sair do círculo estreito em que estão encerrados? Para te explicar a felicidade eterna, dir-te-ei: ama! Pois só o amor pode fazer pressenti-lo; e quem diz amor, diz ausência de egoísmo.
P. Vossa posição foi excelente logo que entrastes no mundo dos Espíritos? – R. Não; tive de pagar a dívida do homem. Meu coração me fizera pressentir o porvir do Espírito, mas eu não tinha fé. Precisei expiar minha indiferença pelo meu Criador, mas sua misericórdia teve consideração pelo pouco bem que tinha podido fazer, pelas dores que eu experimentara com resignação apesar de meu sofrimento, e sua justiça que tem uma balança que os homens jamais compreenderão, pesou o bem com tanta bondade e amor, que o mal foi rapidamente apagado.
P. Gostaríeis de me dar notícias de vossa filha? (morta quatro ou cinco anos depois do pai.) – R. Ela está em missão na vossa terra.
P. Ela está feliz como criatura? Não quero fazer-vos uma pergunta indiscreta. – R. Sei-o bem; acaso não vejo teu pensamento como um quadro diante de meus olhos? Não, como criatura ela não está feliz, ao contrário; todas as misérias de vossa vida devem atingi-la; mas ela deve pregar o exemplo dessas grandes virtudes das quais fazeis palavras bombásticas; ajudá-la-ei, pois devo velar por ela; mas ela não terá grande dificuldade para ultrapassar os obstáculos; ela não está em expiação, mas em missão. Tranquiliza-te então por ela e obrigado pela lembrança.
Nesse momento o médium sente uma dificuldade para escrever, e diz: se for um Espírito sofredor que me detém, peço-lhe que escreva. – R. Uma desgraçada. P. Tende a bondade de me dizer vosso nome. – R. Valérie.
P. Quereis dizer-me o que atraiu o castigo sobre vós? – R. Não.
P. Arrependeis-vos de vossas faltas? – R. Tu o vês bem.
P. Quem vos trouxe aqui? – R. Sixdeniers.
P. Com que objetivo ele o fez? – R. Para que me ajudes.
P. Fostes vós que me impedistes de escrever há pouco? – R. Ele me colocou no lugar dele.
P. Que relação há entre vós? – R. Ele me conduz.
P. Pedi-lhe que se junte a nós para a prece. – (Depois da oração, Sixdeniers continua:) Obrigado por ela; compreendeste, não te esquecerei; pensa nela.
P. (A Sixdeniers). Como Espírito, tendes muitos Espíritos sofredores a guiar? – R. Não; mas tão logo reconduzimos um ao bem, pegamos outro, sem por isso abandonar os primeiros.
P. Como podeis dar conta de uma vigilância que se deve multiplicar ao infinito com os séculos? – R. Compreende que aqueles que trouxemos de volta se purificam e progridem; portanto, eles nos dão menos trabalho; e ao mesmo tempo nós mesmos nos elevamos, e, ascendendo, nossas faculdades progridem, nosso poder irradia em proporção com nossa pureza.
Observação. Os Espíritos inferiores são pois assistidos pelos bons Espíritos que têm a missão de guiá-los; essa tarefa não é exclusivamente entregue aos encarnados, mas estes devem concorrer para ela, porque é para eles um meio de avanço. Quando um Espírito inferior vem se atravessar numa boa comunicação, como no caso presente, não o faz sempre com uma boa intenção, mas os bons Espíritos o permitem, seja como prova, seja a fim de que aquele ao qual ele se dirige trabalhe em seu aperfeiçoamento. Sua persistência, é verdade, degenera às vezes em obsessão, mas quanto mais ela é persistente, mais ela prova quão grande é a necessidade de assistência. Portanto, é um erro repeli-lo; é preciso olhá-lo como um pobre que vem pedir esmola e dizer-se: É um Espírito desgraçado que os bons Espíritos me enviam para fazer sua educação. Se eu conseguir, terei a alegria de ter trazido uma alma de volta ao bem, e ter abreviado seus sofrimentos. Essa tarefa é muitas vezes penosa; seria sem dúvida mais agradável ter sempre belas comunicações, e não conversar senão com os Espíritos de sua escolha; mas não é procurando apenas sua própria satisfação, e recusando as ocasiões que nos oferecem de fazer o bem, que se merece a proteção dos bons Espíritos.
O Sr. Demeure havia abraçado com ardor a doutrina espírita, na qual encontrou a chave dos mais graves problemas cuja solução pedira em vão à ciência e a todas as filosofias. Seu Espírito profundo e investigador fez-lhe imediatamente compreender todo seu alcance, assim ele foi um de seus mais zelosos propagadores. Relações de viva e mútua simpatia se haviam estabelecido entre ele e nós por correspondência.
Soubemos de sua morte em 30 de janeiro, e nosso primeiro pensamento foi conversar com ele. Eis a comunicação que ele nos deu no mesmo dia:
“Eis-me aqui. Prometera a mim mesmo, vivo, que, logo que estivesse morto, viria, se isso me fosse possível, apertar a mão de meu caro mestre e amigo, Sr. Allan Kardec.
“A morte dera à minha alma esse pesado sono que chamamos letargia; mas meu pensamento velava. Sacudi esse torpor funesto que prolonga a perturbação que se segue à morte, despertei, e num salto fiz a viagem.
“Como sou feliz! Não estou mais velho nem enfermo; meu corpo não era senão um disfarce imposto; sou jovem e belo, belo dessa eterna juventude dos Espíritos cujas rugas jamais franzem o rosto, cujos cabelos não embranquecem com o passar do tempo. Sou leve como o pássaro que atravessa com um voo rápido o horizonte de vosso céu nebuloso, e admiro, contemplo, bendigo, amo e inclino-me, átomo, ante a grandeza, a sabedoria, a ciência de nosso Criador, a as maravilhas que me rodeiam.
“Sou feliz; estou na glória! Oh! Quem poderá falar das esplêndidas belezas da terra dos eleitos; os céus, os mundos, os sóis, seu papel no grande concurso da harmonia universal? Pois bem! tentarei, ó meu mestre; vou fazer um estudo, e virei depositar perto de vós a homenagem de meus trabalhos de Espírito que vos dedico antecipadamente. Até breve. “DEMEURE.”
Observação: As duas comunicações seguintes, dadas nos dias 10 e 2 de fevereiro, são relativas à doença que nos acometia naquele momento. Embora sejam pessoais, reproduzimo-las, porque provam que o Sr. Demeure é tão bom como Espírito quanto o era como homem.
“Meu bom amigo, tende confiança em nós e boa coragem; esta crise, ainda que cansativa e dolorosa, não será demorada, e, com os cuidados prescritos, podereis, segundo vossos desejos, completar a obra da qual vossa existência foi o objetivo principal. No entanto, sou eu que estou sempre aqui, perto de vós, com o Espírito de Verdade, que me permite tomar em seu nome a palavra, como o último de vossos amigos vindos para o meio dos Espíritos. Eles me fazem as honras das boas-vindas. Caro mestre, como estou feliz de ter morrido a tempo para estar com eles neste momento! Se eu tivesse morrido mais cedo, talvez tivesse podido vos evitar essa crise que não previa; havia muito pouco tempo que eu estava desencarnado para me ocupar de outra coisa além do espiritual; mas agora velarei por vós, caro mestre, é vosso irmão e amigo que está feliz de ser Espírito para estar junto de vós e tratar-vos em vossa doença; mas conheceis o provérbio: “Ajuda-te, o céu te ajudará.” Ajudai portanto os bons Espíritos nos cuidados que eles vos prestam, conformando-vos estritamente às suas prescrições.
“Está demasiado quente aqui; esse carvão é fatigante. Enquanto estiverdes doente, não queimeis carvão, pois isso faz aumentar vossa opressão; os gases que dele se desprendem são deletérios. “Vosso amigo, DEMEURE.”
“Sou eu, Demeure, o amigo do Sr. Kardec. Venho dizer-lhe que estava perto dele na ocasião do acidente que lhe aconteceu, e que poderia ter sido funesto sem uma intervenção eficaz para a qual fiquei feliz de concorrer. Segundo minhas observações e as informações que extraí de fonte segura, é evidente para mim que, quanto mais cedo sua desencarnação ocorrer, mais cedo poderá se dar a reencarnação pela qual ele virá acabar sua obra. No entanto é preciso que ele dê, antes de partir, a última mão nas obras que devem completar a teoria doutrinal da qual ele é o iniciador, e ele se torna culpado de homicídio voluntário contribuindo, por excesso de trabalho, para a imperfeição de sua organização, que o ameaça com uma súbita partida para nossos mundos. Não se deve temer dizer-lhe toda a verdade, para que ele fique alerta e siga ao pé da letra nossas prescrições.
“DEMEURE.”
A comunicação seguinte foi obtida em Montauban, em 26 de janeiro, dia seguinte à sua morte, no círculo dos amigos espíritas que ele tinha nessa cidade.
“Antoine Demeure. Não morri para vós, meus bons amigos, mas para aqueles que não conhecem, como vós, esta santa doutrina que reúne os que se amaram nesta terra, e que tiveram os mesmos pensamentos e os mesmos sentimentos de amor e de caridade.
“Sou feliz; mais feliz do que podia esperar, pois gozo de uma lucidez rara entre os Espíritos desprendidos da matéria há tão pouco tempo. Tomai coragem, meus bons amigos; estarei frequentemente perto de vós, e não deixarei de vos instruir sobre muitas coisas que ignoramos quando estamos presos à nossa pobre matéria que nos oculta tantas magnificências e tantos gozos. Rezai por aqueles que estão privados dessa felicidade, pois eles não sabem o mal que fazem a si mesmos.
“Não ficarei por muito tempo hoje, mas vos direi que não me acho um estranho neste mundo dos invisíveis; parece-me que sempre o habitei; sou feliz aqui, pois vejo meus amigos, e posso comunicar-me com eles todas as vezes que desejo.
“Não choreis, meus amigos, pois me faríeis lamentar ter-vos conhecido. Dai tempo ao tempo, e Deus vos conduzirá a esta morada onde devemos todos nos encontrar reunidos. Boa noite, meus amigos: que Deus vos console; estou perto de vós.
“DEMEURE.”
Outra carta de Montauban contém a seguinte narração:
“Havíamos escondido da Sra. G..., médium vidente e sonâmbula muito lúcida, a morte do Sr. Demeure, para poupar sua extrema sensibilidade, e o bom doutor, concordando sem dúvida conosco, evitara manifestar-se a ela. Em 10 de fevereiro passado, estávamos reunidos a convite de nossos guias que, diziam eles, queriam aliviar a Sra. G... de um entorse que a fazia sofrer cruelmente desde a véspera. Não sabíamos mais do que isso, e estávamos longe de esperar a surpresa que eles nos preparavam. Mal essa senhora entrou em sonambulismo, soltou gritos dilacerantes mostrando seu pé. Eis o que ocorria:
“A Sra. G... via um Espírito curvado sobre sua perna, cujos traços lhe permaneciam ocultos; ele fazia fricções e massagens, exercendo de tempos em tempos sobre a parte doente uma tração longitudinal, absolutamente como um médico teria feito. A operação era tão dolorosa que a paciente se entregava por vezes a vociferações e a movimentos desordenados. Mas a crise não foi de longa duração; ao fim de dez minutos todo sinal do entorse havia desaparecido, nada de inchaço, o pé recuperara sua aparência normal; a Sra. G... estava curada.
“No entanto o Espírito permanecia desconhecido do médium, e persistia em não mostrar seus traços; tinha mesmo ar de querer ir-se embora, quando de um salto nossa doente, que, alguns minutos antes, não podia dar um passo, se precipita para o meio do quarto para pegar e apertar a mão de seu doutor espiritual. Ainda dessa vez o Espírito desviara a cabeça deixando sua mão na dela. Nesse momento, a Sra. G... dá um grito, e cai desmaiada no chão; ela acabava de reconhecer o Sr. Demeure no espírito curador. Durante a síncope, ela recebia cuidados solícitos de vários Espíritos simpáticos. Por fim, tendo reaparecido a lucidez sonambúlica, ela conversou com os Espíritos, trocando com eles calorosos apertos de mão, especialmente com o Espírito do doutor que respondia a suas provas de afeição penetrando-a de um fluido reparador.
“Esta cena não é tocante e dramática, e não se acreditaria ver todos esses personagens desempenharem seu papel na vida humana? Não é uma prova entre mil que os Espíritos são seres bem reais, tendo um corpo e agindo como o faziam na terra? Estávamos felizes por reencontrar nosso amigo espiritualizado, com seu excelente coração e sua delicada solicitude. Ele fora,
durante a vida, o médico da médium; conhecia sua extrema sensibilidade, e cuidara dela como sua própria filha. Essa prova de identidade dada àqueles que o Espírito amava, não é impressionante e apropriada para fazer encarar a vida futura em seu aspecto mais consolador?
Observação. – A situação do Sr. Demeure, como Espírito, é exatamente aquela que podia fazer pressentir sua vida tão dignamente e tão utilmente ocupada; mas outro fato não menos instrutivo destaca-se dessas comunicações, é a atividade a que ele se entrega quase imediatamente após a morte, para ser útil. Por sua grande inteligência e suas qualidades morais, ele pertence à ordem dos Espíritos muito avançados; ele é feliz, mas sua bem-aventurança não é a inação. A alguns dias de distância, ele tratava de doentes como médico, e, assim que se liberta apressa-se a ir tratar deles como Espírito. O que se ganha então por estar no outro mundo, dirão certas pessoas, se não se goza do repouso? A isso perguntaremos primeiro se não é nada não ter mais preocupações, nem as necessidades, as enfermidades da vida, ser livre, e poder, sem fadiga, percorrer o espaço com a rapidez do pensamento, ir ver seus amigos a toda hora, seja qual for a distância a que se encontrem? Depois acrescentaremos: Quando estiverdes no outro mundo, nada vos forçará a fazer o que quer que seja; sereis perfeitamente livres para ficar numa beata ociosidade tanto tempo quanto vos agradar; mas cansareis logo desse repouso egoísta; sereis os primeiros a pedir uma ocupação. Então vos será respondido: Se vos entediais de não fazer nada, procurai vós mesmos fazer algo; as ocasiões de ser útil não faltam mais no mundo dos Espíritos do que entre os homens. É assim que a atividade espiritual não é uma coerção; ela é uma necessidade, uma satisfação para os Espíritos que buscam as ocupações em relação com seus gostos e aptidões, e escolhem de preferência aquelas que podem ajudar no seu adiantamento.
Sua morte foi digna de sua vida. Ela viu-a aproximar-se sem nenhuma apreensão penosa: era para ela a libertação dos laços terrestres, que devia abrir-lhe essa vida espiritual bem-aventurada com a qual se identificara pelo estudo do Espiritismo. Morreu com calma, porque tinha a consciência de ter cumprido a missão que aceitara vindo para a terra, de ter escrupulosamente preenchido seus deveres de esposa e de mãe de família, porque também, durante a vida, abjurara de todo ressentimento contra aqueles dos quais devia queixar-se, e que lhe haviam pago com ingratidão; tinha-lhes sempre retribuído o bem pelo mal, e deixou a vida perdoando-lhes, entregando-se a si mesma à bondade e à justiça de Deus. Morreu enfim com a serenidade que uma consciência pura proporciona, e a certeza de estar menos separada de seus filhos do que durante a vida corpórea, visto que poderá doravante estar com eles em Espírito, em qualquer lugar do globo em que eles estejam, ajudá-los com seus conselhos, e cobri-los com sua proteção.
Logo que soubemos da morte da Sra. Foulon, nosso primeiro desejo foi conversar com ela. As relações de amizade e de simpatia que a doutrina espírita fizera nascer entre ela e nós explicam algumas de suas palavras e a familiaridade de sua linguagem.
I
(Paris, 6 de fevereiro de 1865, três dias após sua morte.)
Tinha certeza de que teríeis o pensamento de me evocar logo depois de minha libertação, e estava pronta para vos responder, pois não experimentei perturbação; somente aqueles que têm medo ficam envoltos por suas espessas trevas.
Pois bem! meu amigo, sou feliz agora; aqueles pobres olhos que tinham enfraquecido, e que não me deixavam senão a recordação dos prismas que coloriram minha juventude com seu cambiante esplendor, abriram-se aqui e reencontraram os esplêndidos horizontes que idealizam, em suas vagas reproduções, alguns de vossos grandes artistas, mas cuja realidade majestosa, severa porém cheia de encantos, está impregnada da mais completa realidade.
Há apenas três dias que morri, e sinto que sou artista; minhas aspirações ao ideal da beleza na arte não eram senão a intuição de faculdades que eu estudara e adquirira em outras existências e que se desenvolveram na última. Mas tenho muito que fazer para reproduzir uma obra-prima digna da grande cena que impressiona o espírito ao chegar à região da luz! Pincéis! Pincéis! E provarei ao mundo que a arte espírita é o coroamento da arte pagã, da arte cristã que periclita, e que unicamente ao Espiritismo está reservada a glória de fazê-la reviver em todo o seu esplendor no vosso mundo deserdado.
Basta para a artista; é a vez da amiga.
Por que, boa amiga (senhora Allan Kardec), ficar assim afetada pela minha morte? Sobretudo vós que conheceis as decepções e as amarguras da minha vida, deveríeis alegrar-vos, ao contrário, por ver que agora não tenho mais que beber do cálice amargo das dores terrestres que esvaziei até o fim.
Acreditai-me, os mortos são mais felizes do que os vivos, e chorá-los é duvidar da verdade do Espiritismo. Rever-me-eis, tende certeza; parti primeiro porque minha tarefa acabara aqui embaixo; cada um tem a sua a cumprir na terra, e quando a vossa tiver acabado, vireis repousar um pouco perto de mim, para recomeçar em seguida, se for preciso, visto que não é da natureza permanecer inativo. Cada um tem suas tendências e obedece a elas; é uma lei suprema que prova o poder do livre-arbítrio; igualmente, boa amiga, todos nós precisamos reciprocamente de indulgência e caridade, quer no mundo visível, quer no mundo invisível; com esta máxima, tudo fica bem.
Vós não me diríeis para parar. Sabeis que converso longamente pela primeira vez! Então deixo-vos; é a vez de meu excelente amigo, Sr. Kardec. Quero agradecer-lhe pelas afetuosas palavras que dirigiu à amiga que o precedeu no túmulo; pois por pouco não partimos juntos para o mundo em que me encontro, meu bom amigo! (Alusão à doença de que fala o doutor Demeure.) O que teria ela dito, a companheira bem-amada de vossos dias, se os bons Espíritos não tivessem posto isso em boa ordem? Seria então que ela teria chorado e gemido, e eu compreendo; mas também é preciso que ela tome cuidado para que vós não vos exponhais de novo ao perigo antes de terdes acabado vosso trabalho de iniciação espírita, sem isso correis o risco de chegar demasiado cedo até nós e não ver, como Moisés, a Terra prometida a não ser de longe. Ficai portanto alerta, é uma amiga que vos previne.
Agora, vou-me embora; retorno para junto de meus queridos filhos; depois vou ver, além dos mares, se minha ovelha viajante chegou enfim ao porto, ou se ela é joguete da tempestade. (Uma de suas filhas que morava na América.) Que os bons Espíritos a protejam; vou reunir-me a eles para isso. Voltarei a conversar convosco, pois sou uma conversadeira incansável; vós vos recordais. Então adeus, bons e caros amigos; até breve.
II
(8 de fevereiro de 1865.)
P. Cara senhora Foulon, estou muito feliz com a comunicação que me fizestes no outro dia e com a vossa promessa de continuar nossas conversas.
Reconheci-vos perfeitamente na comunicação; falais ali de coisas ignoradas pelo médium e que não podem vir senão de vós; depois vossa linguagem afetuosa a nosso respeito, é bem a da vossa alma carinhosa; mas há em vossas palavras uma segurança, um equilíbrio, uma firmeza que não vos conhecia durante a vida. Sabeis que a esse respeito eu me permiti mais de uma admoestação em certas circunstâncias.
R. É verdade; mas assim que me vi gravemente doente, recuperei minha firmeza de espírito, perdida pelos desgostos e as vicissitudes que por vezes me haviam tornado receosa durante a vida. Disse a mim mesma: És espírita; esquece a terra; prepara-te para a transformação de teu ser, e vê, pelo pensamento, o caminho luminoso que tua alma deve seguir ao deixar teu corpo, e que a conduzirá, feliz e liberta, às esferas celestes onde deves viver doravante.
Dir-me-eis que era um pouco presunçoso de minha parte contar com a bem-aventurança perfeita ao deixar a terra, mas eu sofrera tanto que devia ter expiado as minhas faltas desta existência e das existências precedentes. Essa intuição não me enganara, e foi ela que me devolveu a coragem, a calma e a firmeza dos últimos instantes: essa firmeza aumentou naturalmente quando, após a libertação, vi minhas esperanças realizadas.
P. Tende a bondade de nos descrever agora vossa passagem, vosso despertar e vossas primeiras impressões.
R. Sofri, mas meu Espírito foi mais forte do que o sofrimento material que o desprendimento lhe fazia sentir. Encontrei-me, depois do supremo suspiro, como em síncope, não tendo nenhuma consciência de meu estado, não pensando em nada, e numa vaga sonolência que não era nem o sono do corpo, nem o despertar da alma. Fiquei assim muito tempo; depois, como se saísse de um longo desmaio, despertei pouco a pouco no meio de irmãos que não conhecia; eles me prodigalizavam seus cuidados e suas carícias, mostrando-me um ponto no espaço que se parecia com uma estrela brilhante, e disseram-me: “É para lá que virás conosco; não pertences mais à terra.” Então recordei-me; apoiei-me neles, e, como um grupo gracioso que se lança rumo às esferas desconhecidas, mas com a certeza de lá encontrar a bem-aventurança, subimos, subimos, e a estrela aumentava. Era um mundo feliz, um mundo superior, onde vossa boa amiga vai enfim encontrar o repouso; quero dizer o repouso considerando as fadigas corporais que aguentei e as vicissitudes da vida terrestre, mas não a indolência do Espírito, pois a atividade do Espírito é um regozijo.
P. Deixastes definitivamente a terra?
R. Deixo aí ainda muitos seres que me são caros para deixá-la definitivamente. Portanto, voltarei aí em Espírito, pois tenho uma missão a cumprir para com os meus netos. Sabeis bem, aliás, que nenhum obstáculo se opõe a que os Espíritos que estacionam nos mundos superiores à terra venham visitá-la.
P. A posição em que estais parece dever enfraquecer vossas relações com aqueles que deixastes aqui embaixo?
R. Não, meu amigo, o amor aproxima as almas. Acreditai-me, pode-se estar, na terra, mais perto daqueles que atingiram a perfeição do que daqueles que a inferioridade e o egoísmo fazem turbilhonar em torno da esfera terrestre. A caridade e o amor são dois motores de uma atração poderosa. É o laço que cimenta a união das almas ligadas uma à outra e a continua apesar da distância e dos lugares. Só há distância para os corpos materiais; ela não existe para os Espíritos.
P. Que ideia fazeis agora de meus trabalhos referentes ao Espiritismo?
R. Creio que estais encarregado de almas e que o fardo é penoso de carregar; mas vejo o objetivo e sei que o alcançareis; ajudar-vos-ei, se possível, com meus conselhos de Espírito para que possais superar as dificuldades que vos serão suscitadas, comprometendo-vos apropriadamente a tomar certas medidas capazes de ativar, durante vossa vida, o movimento renovador ao qual impele o Espiritismo. Vosso amigo Demeure, unido ao Espírito de verdade, servos-á de contribuição ainda mais útil; ele é mais instruído e mais sério do que eu; mas, como sei que a assistência dos bons Espíritos vos fortalece e vos sustenta em vosso labor, acreditai que a minha vos estará assegurada em toda parte e sempre.
P. Poder-se-ia induzir de algumas de vossas palavras que não dareis uma cooperação pessoal muito ativa à obra do Espiritismo.
R. Estais enganado; mas vejo tantos outros Espíritos mais capazes do que eu de tratar essa questão importante, que um sentimento invencível de timidez me impede, no momento, de vos responder de acordo com vossos desejos. Talvez isso aconteça; terei mais coragem e ousadia; mas é preciso antes que eu os conheça melhor. Morri só há quatro dias; ainda estou sob o encanto do deslumbramento que me rodeia; meu amigo, não o compreendeis? Não consigo exprimir as novas sensações que experimento. Precisei fazer árduos esforços para evitar a fascinação que exercem sobre o meu ser as maravilhas que ele admira. Não posso senão abençoar e adorar Deus em suas obras. Mas isso passará; os Espíritos me asseguram que em breve estarei acostumada a todas estas magnificências e que poderei então, com minha lucidez de Espírito, tratar de todas as questões relativas à renovação terrestre. Depois, com tudo isso, pensai que neste momento tenho acima de tudo uma família para consolar.
Adeus e até breve; vossa boa amiga que vos ama e amará sempre, meu mestre, pois foi a vós que ela deveu a única consolação duradoura e verdadeira que provou na terra. Viúva FOULON.
III
A comunicação seguinte foi dada para seus filhos, em 9 de fevereiro:
Meus filhos, meus bem-amados, Deus me retirou do meio de vós, mas a recompensa que ele se digna conceder-me é bem grande em comparação ao pouco que fiz na terra. Resignai-vos, meus bons filhos, às vontades do Altíssimo; tirai de tudo o que ele permitiu que recebêsseis, a força de suportar as provas da vida. Tende sempre firme em vosso coração essa crença que tanto facilitou minha passagem da vida terrestre à vida que nos espera ao sair desse vale de lágrimas. Deus estendeu sobre mim, após minha morte, sua inesgotável bondade, como se dignou fazer enquanto eu estava na terra. Agradecei-lhe todos os benefícios que ele vos concede; bendizei-o, meus filhos, bendizei-o sempre, em todos os instantes. Não percais nunca de vista o objetivo que vos foi indicado, nem o caminho que tendes de seguir; pensai no emprego que tendes de fazer do tempo que Deus vos concede na terra. Sereis felizes aí, meus bemamados, felizes uns pelos outros, se a união reinar entre vós; felizes por vossos filhos, se os criardes no bom caminho, naquele que Deus permitiu que vos fosse revelado.
Oh! Se não podeis ver-me, sabei que o laço que nos unia na terra não se rompeu com a morte do corpo, pois não era o envoltório que nos ligava, mas o Espírito; é por aí, meus bem-amados, que poderei, pela bondade do Onipotente, guiar-vos ainda e encorajar-vos em vossa marcha para nos reunirmos mais tarde.
Vamos, meus filhos, cultivai com o mesmo amor esta sublime crença; belos dias vos estão reservados, a vós que credes. Disseram-vos, mas eu não devia vê-los na terra; é de cima que julgarei os tempos felizes prometidos pelo Deus bom, justo e misericordioso.
Não choreis, meus filhos; que estas conversas fortaleçam vossa fé, vosso amor em Deus, que tantos dons espalhou sobre vós, que tantas vezes enviou auxílio à vossa mãe. Rezai-lhe sempre: a oração fortalece. Conformai a vida que Deus vos concede às instruções que eu seguia tão ardentemente. Voltarei a vós, meus filhos, mas é preciso que eu apoie minha pobre filha que tanto precisa de mim ainda. Adeus, até breve. Crede na bondade do Onipotente; rezo por vós. Adeus. Vva. FOULON.
Observação. – Todo espírita sério e esclarecido tirará facilmente destas comunicações os ensinamentos que delas se destacam; chamaremos a atenção apenas para dois pontos. O primeiro é que este exemplo nos mostra a possibilidade de não mais encarnar na Terra e passar daqui para um mundo superior, sem ficar por isso separado dos afetos aqui deixados. Aqueles pois que temem a reencarnação por causa das misérias da vida, podem se livrar dela fazendo o que é preciso, ou seja, trabalhando para seu aperfeiçoamento. Assim, aquele que não quer vegetar nas classes inferiores deve se instruir e trabalhar para subir de grau.
O segundo ponto é a confirmação dessa verdade de que após a morte estamos menos separados dos seres que nos são caros do que durante a vida. A Sra. Foulon, retida pela idade e a enfermidade numa cidadezinha do Sul, tinha junto dela apenas uma parte de sua família; estando dispersa e longe a maioria de seus filhos e amigos, obstáculos materiais se opunham a que ela pudesse vê-los tantas vezes quanto uns e outros desejariam. O grande afastamento tornava até mesmo a correspondência rara e difícil para alguns. Mal ela se desembaraçou de seu envoltório que, leve, acorre a cada um, transpõe as distâncias sem fadiga, com a rapidez da eletricidade, vê-os, assiste às suas reuniões íntimas, cerca-os com sua proteção e pode, pela via da mediunidade, conversar com eles a todo instante, como quando vivia. E dizer que a este pensamento consolador há pessoas que preferem a ideia de uma separação indefinida!
infinitamente.
P...
Sou um Espírito esquecido há muitos séculos; vivi na terra na miséria e no opróbrio; trabalhei sem descanso para trazer cada dia à minha família um pedaço de pão insuficiente; mas amava meu senhor verdadeiro, e quando aquele que me carregava na terra aumentava meu fardo de dor, eu dizia: Meu Deus, dai-me a força de suportar este peso sem me queixar. Eu expiava, meus amigos; mas ao sair dessa rude prova, o Senhor me recebeu na paz, e meu voto mais caro é reunir-vos à minha volta, meus filhos, meus irmãos, e dizer-vos: Seja qual for o preço a pagar, a felicidade que vos aguarda é ainda bem superior a ele.
Eu não tinha estado; filho de uma numerosa família, servi quem podia ajudar-me a suportar minha vida. Nascido numa época em que a escravidão era cruel, suportei todas as injustiças, todas as corveias, todas as cargas que os subalternos do Senhor se compraziam em me impor. Vi minha mulher ultrajada; vi minhas filhas raptadas e depois rejeitadas, sem poder queixar-me; vi meus filhos levados para guerras de pilhagens e de crimes, enforcados por faltas que não tinham cometido! Se soubésseis, pobres amigos, o que aguentei na minha longa existência! Mas eu esperava, esperava a felicidade que não está na terra, e o Senhor ma concedeu. A vós todos então, meus irmãos, coragem, paciência e resignação.
Meu filho, podes conservar o que te dei; é um ensinamento prático. Aquele que prega é mais bem escutado quando pode dizer: Suportei mais do que vós; suportei sem me queixar.
Condessa Paula
Era uma mulher jovem, bela, rica, de nascimento ilustre de acordo com o mundo, e ademais, um modelo consumado de todas as qualidades do coração e do espírito. Morreu com trinta e seis anos, em 1851. Era uma dessas pessoas cuja oração fúnebre se resume a estas palavras, em todas as bocas: “Por que Deus retira tão cedo tais pessoas da face da terra?” Bem-aventurados aqueles que fazem assim bendizer sua memória! Ela era boa, doce e indulgente para todo o mundo; sempre pronta a desculpar ou atenuar o mal, em vez de o envenenar; nunca a maledicência lhe sujou os lábios. Sem soberba nem orgulho, tratava seus inferiores com uma benevolência que não tinha nada da baixa familiaridade, e sem afetar para com eles ares de altivez ou uma proteção humilhante. Compreendendo que as pessoas que vivem de seu trabalho não vivem de rendas, e que precisam do dinheiro que lhes é devido, seja para seu estado, seja para viver, nunca fez esperar um salário; o pensamento de que alguém pudesse sofrer por falta de pagamento de sua parte, teria sido um remorso de consciência para ela. Não era dessas pessoas que sempre acham dinheiro para satisfazer suas fantasias e nunca têm para pagar o que devem; não compreendia que pudesse ser de bom gosto para um rico ter dívidas, e terse-ia sentido humilhada se se pudesse dizer que seus fornecedores eram obrigados a lhe fazer empréstimos. Assim, por ocasião de sua morte, só houve lamentos e nenhuma reclamação.
Sua benevolência era inesgotável, mas não era essa benevolência oficial que se exibe aos olhos de todos; era a caridade do coração e não a da ostentação. Só Deus sabe as lágrimas que secou e os desesperos que acalmou, pois essas boas ações tinham por testemunhas apenas Ele e os desgraçados que ela assistia. Sobretudo, ela sabia descobrir esses infortúnios ocultos, que são os mais pungentes, e que socorria com a delicadeza que eleva o moral em vez de abatê-lo.
Sua posição e as altas funções do marido a obrigavam a um governo da casa ao qual não podia esquivar-se; mas, satisfazendo as exigências de sua posição sem mesquinhez, mantinha uma ordem que, evitando os desperdícios ruinosos e as despesas supérfluas, lhe permitia realizá-lo com a metade do que teria custado a outros sem fazer melhor.
Ela podia dessa forma tirar de sua fortuna uma parte maior para os necessitados. Retirara dela um capital importante cuja renda era exclusivamente reservada a essa destinação sagrada para ela, e considerava-a como tendo isso a menos para gastar com sua casa. Encontrava assim o meio de conciliar seus deveres para com a sociedade e para com a desgraça.*
Evocada, doze anos após a morte, por um de seus parentes iniciado no Espiritismo, ela deu a comunicação seguinte em resposta a diversas perguntas que lhe eram dirigidas: **
“Tendes razão, meu amigo, de pensar que sou feliz; com efeito, sou feliz, além de tudo o que se pode exprimir, e, no entanto, ainda estou longe do último degrau. Eu estava, porém, entre os bem-aventurados da terra, pois não me recordo de ter sentido desgosto real. Juventude, saúde, fortuna, homenagens, tinha tudo o que constitui a felicidade entre vós; mas o que é essa felicidade perto desta que se experimenta aqui? O que são as vossas mais esplêndidas festas, onde se exibem os mais ricos enfeites, perto destas assembleias de Espíritos resplandecendo de um brilho que vossa vista não poderia suportar, e que é o apanágio da pureza? O que são vossos palácios e vossos salões dourados perto destas moradas aéreas, dos vastos campos do espaço, matizados de cores que fariam empalidecer o arco-íris? O que são vossos passeios vagarosos em vossos parques, perto das corridas através da imensidão, mais rápidas do que o raio? O que são vossos horizontes limitados e nebulosos perto do espetáculo grandioso dos mundos movendo-se no universo sem limites sob a poderosa mão do Altíssimo? Como vossos concertos mais melodiosos são tristes e agudos perto desta suave harmonia que faz vibrar os fluidos do éter e todas as fibras da alma! Como vossas maiores alegrias são tristes e insípidas perto da inefável sensação de felicidade que penetra incessantemente todo o nosso ser como um eflúvio benfazejo, sem nenhuma inquietação, nenhuma apreensão, nenhum sofrimento! Aqui tudo respira amor, confiança, sinceridade; por toda a parte corações afetuosos, em toda a parte amigos, em parte alguma invejosos e ciumentos. Tal é o mundo onde estou, meu amigo, e ao qual chegareis infalivelmente seguindo o reto caminho.
“Porém, aborreceria logo uma felicidade uniforme; não acrediteis que a nossa seja isenta de peripécias; não é nem um concerto perpétuo, nem uma festa sem fim, nem uma beata contemplação durante a eternidade; não, é o movimento, a vida, a atividade. As ocupações, embora isentas de fadigas, trazem-lhe uma incessante variedade de aspectos e de emoções pelos mil incidentes ali espalhados. Todos têm sua missão a cumprir, seus protegidos a assistir, amigos da terra a visitar, mecanismos da natureza a dirigir, almas sofredoras a consolar; vão, vêm, não de uma rua à outra, mas de um mundo ao outro; juntam-se, separam-se para se reunirem em seguida; convergem num ponto, comunicam o que fizeram, congratulam-se pelos sucessos obtidos; põem-se de acordo, assistem-se reciprocamente nos casos difíceis; enfim, asseguro-vos que ninguém tem tempo de se entediar por um segundo.
“Neste momento, a terra é nosso grande tema de preocupação. Quanto movimento entre os Espíritos! Que numerosas coortes aí afluem para concorrer para a sua transformação! Dir-se-ia uma nuvem de trabalhadores ocupados a desbravar uma floresta, sob a condução de chefes experientes; uns abatem as velhas árvores com o machado, arrancam as profundas raízes; preparando outros o terreno, lavrando e semeando estes, edificando aqueles a nova cidade sobre as ruínas carcomidas do velho mundo. Enquanto isso, os chefes se reúnem, deliberam e enviam mensageiros para dar ordens em todas as direções. A terra deve ser regenerada num dado tempo; é preciso que os desígnios da Providência se cumpram; é por isso que todos põem mãos à obra. Não acrediteis que eu seja simples espectadora desse grande trabalho; teria vergonha de ficar inativa quando todo o mundo se ocupa; uma importante missão me é confiada, e esforço-me para cumpri-la o melhor possível.
“Não foi sem lutas que cheguei ao lugar que ocupo na vida espiritual; crede que minha última existência, por mais meritória que vos pareça, não teria bastado para isso. Durante várias existências passei pelas provas do trabalho e da miséria que escolhera voluntariamente para fortalecer e purificar minha alma; tive a felicidade de sair delas vitoriosa, mas restava uma a suportar, a mais perigosa de todas: a da fortuna e do bem-estar material, de um bem-estar sem nenhuma amargura: ali residia o perigo. Antes de tentá-la, quis sentir-me suficientemente forte para não sucumbir. Deus levou em conta minhas boas intenções e concedeu-me a graça de me apoiar. Muitos outros Espíritos, seduzidos pelas aparências, apressam-se a escolhê-la; fracos demais, infelizmente, para enfrentar o perigo, as seduções triunfam de sua inexperiência.
“Trabalhadores, estive nas vossas fileiras; eu, a nobre dama, como vós ganhei meu pão com o suor do meu rosto; aguentei privações, sofri intempéries, e foi o que desenvolveu as forças viris da minha alma; sem isso, eu teria provavelmente fracassado na minha última prova, o que me teria feito recuar para bem longe. Como eu, tereis também por vossa vez a prova da fortuna, mas não vos apresseis em pedi-la demasiado cedo; e vós que sois ricos, tende sempre presente o pensamento de que a verdadeira fortuna, a fortuna imperecível, não está na terra, e compreendei a que custo podeis merecer os benefícios do Onipotente.” PAULA, na terra, condessa de -------.
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* Pode-se dizer que essa dama era o retrato vivo da mulher benfazeja, traçado no Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIII.
** Extraímos desta comunicação, cujo original é em língua alemã, as partes instrutivas para o assunto que nos ocupa, suprimindo o que é apenas um interesse de família.
Meus amigos, como esta nova vida é magnífica! Semelhante a uma torrente luminosa, ela arrasta na sua marcha imensa as almas inebriadas de infinito! Após a ruptura dos laços carnais, meus olhos abarcaram os horizontes novos que me cercam e gozei das esplêndidas maravilhas do infinito. Passei das sombras da matéria à aurora resplandecente que anuncia o Onipotente. Estou salvo, não pelo mérito de minhas obras, mas pelo conhecimento do princípio eterno que me fez evitar as máculas imprimidas pela ignorância à pobre humanidade. Minha morte foi bendita; meus biógrafos a julgarão prematura; cegos! lamentarão alguns escritos nascidos da poeira, e não compreenderão quanto o pouco ruído que se faz em volta de meu túmulo semifechado é útil para a santa causa do Espiritismo. Minha obra estava terminada; meus predecessores corriam na arena; eu alcançara esse ponto culminante em que o homem deu o que tinha de melhor, e no qual não faz mais do que recomeçar. Minha morte reaviva a atenção dos letrados e a traz de volta à minha obra capital, que toca na grande questão espírita que eles afetam desconhecer, e que em breve os enlaçará. Glória a Deus! Ajudado pelos Espíritos superiores que protegem a nova doutrina, vou ser um dos batedores que balizam vossa estrada. JEAN REYNAUD.
(Paris; reunião de família. Outra comunicação espontânea.)
O Espírito responde a uma reflexão feita sobre sua morte inesperada, numa idade pouco avançada, e que surpreendeu muita gente.
“Quem vos diz que minha morte não é um benefício para o Espiritismo, para o seu futuro, para as suas consequências? Notastes, meu amigo, a marcha que o progresso segue, o caminho que a fé espírita toma? Primeiramente, Deus deu provas materiais: dança das mesas, batidas e todas as espécies de fenômenos; era para chamar a atenção; era um prefácio divertido. Os homens precisam de provas palpáveis para crer. Agora é coisa completamente diferente! Depois dos feitos materiais, Deus fala à inteligência, ao bom senso, à fria razão; não são mais proezas admiráveis, mas coisas racionais que devem convencer e congregar mesmo os incrédulos, os mais obstinados. E é apenas o começo.
Notai bem o que vos digo: toda uma série de feitos inteligentes, irrefutáveis, vão seguir-se, e o número de adeptos da fé espírita, tão grande já, vai aumentar ainda. Deus vai ater-se às inteligências de elite, às sumidades do espírito, do talento e do saber. Vai ser um raio luminoso que se espalhará sobre toda a terra como um fluido magnético irresistível, e impelirá os mais recalcitrantes à pesquisa do infinito, ao estudo dessa admirável ciência que nos ensina máximas tão sublimes. Todos se vão agrupar à vossa volta, e, fazendo abstração do diploma de gênio que lhes fora dado, vão fazer-se humildes e pequenos para aprender e para se convencerem. Depois, mais tarde, quando estiverem bem instruídos e bem convencidos, eles se servirão de sua autoridade e da notoriedade de seu nome para ir ainda mais longe e alcançar os últimos limites do objetivo a que vós todos vos propusestes: a regeneração da espécie humana pelo conhecimento racional e aprofundado das existências passadas e futuras. Eis minha sincera opinião sobre o estado atual do Espiritismo.”
(Bordeaux.)
Evocação. – Acorro com prazer ao vosso apelo, senhora. Sim, tendes razão; a perturbação espírita não existiu, por assim dizer, para mim (isto respondia ao pensamento da médium); exilado voluntário na vossa terra, onde tinha de jogar a primeira semente séria das grandes verdades que envolvem o mundo neste momento, sempre tive consciência da pátria e me reconheci depressa no meio de meus irmãos.
R. Entre professar e praticar há uma grande diferença. Muita gente professa uma doutrina sem a praticar; eu praticava e não professava. Assim como é cristão todo homem que segue as leis do Cristo, ainda que sem as conhecer, igualmente todo homem que crê em sua alma imortal, nas suas reexistências, na sua marcha progressiva incessante, nas provas terrestres, abluções necessárias para se purificar, pode ser espírita; eu acreditava nisso, portanto, era espírita. Compreendi a erraticidade, esse vínculo intermediário entre as encarnações, esse purgatório onde o Espírito culpado se despoja de suas roupas maculadas para revestir uma nova veste, onde o Espírito em progresso tece com cuidado a veste que vai usar de novo e que quer conservar pura. Compreendi, disse-vos, e sem professar continuei a praticar.
O Sr. Canu, secretário da Sociedade, outrora profundo materialista, pronunciou sobre seu túmulo a alocução seguinte:
“Obrigado, amigos, obrigado; meu túmulo ainda não está fechado, e no entanto, um segundo mais e a terra vai cobrir meus restos. Mas, vós o sabeis, minha alma não será enterrada sob este pó; ela vai planar no espaço para subir a Deus!
“Assim, como é consolador poder dizer ainda, apesar do invólucro rompido: Oh! não, não morri, vivo a verdadeira vida, a vida eterna!
“Oh! decerto que não! não morremos porque nosso corpo se rompe, mulher bem-amada! E doravante estarei sempre perto de ti para te consolar e te ajudar a suportar a prova. A vida será rude para ti; mas com a ideia da eternidade e do amor de Deus enchendo teu coração, como teus sofrimentos te serão leves!
“Parentes que cercais minha bem-amada companheira, amai-a, respeitaia; sede para ela irmãos e irmãs. Não esqueçais que deveis todos assistência uns aos outros na terra, se quiserdes entrar na morada do Senhor. “E vós, espíritas, irmãos, amigos, obrigado por terdes vindo até esta morada de poeira e de lama me dizer adeus; mas vós sabeis, sabeis bem que minha alma vive, imortal, e que ela irá às vezes vos pedir orações, que não me serão recusadas, para me ajudar a caminhar nesta via magnífica que me abristes durante a vida. “Adeus a todos, que estais aqui, poderemos rever-nos em outro lugar que não este túmulo. As almas chamam-me ao seu encontro. Adeus, orai por aquelas que sofrem. Até logo! COSTEAU.”
Três dias mais tarde, o Espírito do Sr. Costeau, evocado num grupo particular, ditou o que se segue por intermédio de outro médium:
“Obrigado, meus bons amigos, por me terdes atraído para vós. Dizei a nossos irmãos que estou frequentemente em companhia de nosso amigo Sanson. Até logo; coragem! A vitória vos espera. Felizes aqueles que tiverem tomado parte no combate!”
Desde então, o Sr. Costeau manifestou-se com frequência, quer na Sociedade, quer em outras reuniões, em que sempre deu provas dessa elevação de pensamentos que caracteriza os Espíritos avançados.
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* Para mais detalhes, e as outras alocuções, ver a Revue spirite de outubro de 1863, página 297.
Jovem mulher morta em consequência de um acidente causado pelo fogo, e após cruéis sofrimentos. Alguém se propusera a pedir sua evocação à Sociedade Espírita de Paris, quando ela se apresentou espontaneamente em 31 de julho de 1863, pouco tempo após sua morte.
“A chama que consumiu meu fraco corpo despojou-me do apego àquilo que passa; assim morri já vivendo a verdadeira vida. Não conheci a perturbação, e entrei serena e recolhida no dia radioso que envolve os que, depois de terem sofrido muito, tiveram um pouco de esperança. Minha mãe, minha querida mãe, foi a última vibração terrestre que ressoou em minha alma. Como gostaria que ela se tornasse espírita!
“Desprendi-me da árvore terrestre como um fruto maduro antes do tempo. Eu estava apenas tocada pelo demônio do orgulho que aguilho a as almas das desgraçadas arrastadas pelo sucesso brilhante e a embriaguez da juventude.Bendigo a chama; bendigo os sofrimentos; bendigo a prova que era uma expiação. Semelhante a esses leves fios brancos do outono, flutuo arrastada na corrente luminosa; não são mais as estrelas de diamante que brilham na minha fronte, mas as estrelas de ouro do bom Deus.
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* Srta. Emma Livry.
O Doutor Vignal
Antigo membro da Sociedade de Paris, morto em 27 de março de 1865. Na véspera do enterro, um sonâmbulo muito lúcido e que vê muito bem os Espíritos, convidado a se transportar para perto dele, e a dizer se o via, respondeu:
“Vejo um cadáver no qual se opera um trabalho extraordinário; dir-se-ia uma massa que se agita, e como algo que faz esforços para se desprender disso, mas que custa a vencer a resistência. Não distingo uma forma de Espírito bem determinada.”
Ele foi evocado na Sociedade de Paris em 31 de março.
P. – Caro senhor Vignal, todos os vossos antigos colegas da Sociedade de Paris guardaram de vós a melhor recordação, e eu em particular a das excelentes relações que não cessaram entre nós. Chamando-vos ao nosso meio, temos primeiro como objetivo dar-vos uma prova de simpatia, e ficaremos muito felizes se quiserdes, ou se puderdes vir conversar conosco. – R. Caro amigo e digno mestre, vossa boa recordação e vossas provas de simpatia são muito importantes para mim. Se hoje posso vir até vós, e assistir livre e desprendido a esta reunião de todos os nossos bons amigos e irmãos espíritas, é graças ao vosso bom pensamento e à assistência que vossas preces me trouxeram. Como dizia com exatidão meu jovem secretário, eu estava impaciente por me comunicar; desde o começo da reunião desta noite, empreguei todas as minhas forças espirituais para dominar esse desejo; vossas conversas e as graves questões que debatestes, interessando-me vivamente, tornaram minha espera menos penosa. Perdão, caro amigo, mas o meu reconhecimento pedia para se manifestar.
P. Tende a bondade de dizer-nos primeiro como vos encontrais no mundo dos Espíritos. Tende a bondade de ao mesmo tempo nos descrever o trabalho da separação, vossas sensações naquele momento, e dizer-nos ao fim de quanto tempo vos reconhecestes. – R. Sou tão feliz quanto se pode ser, quando se vê plenamente confirmados todos os pensamentos secretos que emitimos sobre uma doutrina consoladora e reparadora. Sou feliz! Sim, eu o sou, pois agora vejo sem nenhum obstáculo se desenvolver diante de mim o futuro da ciência e da filosofia espíritas.
Mas afastemos por hoje essas digressões inoportunas; virei de novo conversar convosco sobre esse assunto, sabendo que minha presença vos trará tanto prazer quanto eu mesmo sinto ao visitar-vos.
O dilaceramento foi bastante rápido; mais rápido do que o meu pouco mérito me fazia esperar. Fui ajudado poderosamente pelo vosso concurso, e vosso sonâmbulo vos deu uma ideia bastante nítida do fenômeno da separação, para que eu não insista nisso. Era uma espécie de oscilação descontínua, uma espécie de arrastamento em dois sentidos opostos; o Espírito triunfou, visto que estou aqui. Não deixei completamente o corpo senão no momento em que ele foi baixado à terra; eu voltei convosco.
P. O que pensais do serviço que foi feito para vosso funeral? Estabeleci para mim o dever de assistir a ele. Naquele momento estáveis suficientemente desprendido para vê-lo, e as preces que disse por vós (não ostensivamente, bem entendido) foram até vós? – R. Sim; como vos disse, vossa assistência fez tudo em parte, e voltei convosco, abandonando completamente minha velha crisálida. Aliás, as coisas materiais tocam-me pouco, vós o sabeis. Eu não pensava senão na alma e em Deus.
P. Recordais-vos de que, a pedido vosso, há cinco anos, no mês de fevereiro de 1860, fizemos um estudo sobre vós ainda vivo. * Naquele momento vosso Espírito se desprendeu para vir conversar conosco. Tende a bondade de nos descrever, tanto quanto possível, a diferença que existe entre vosso desprendimento atual e aquele de então? – R. Sim, decerto, recordo-me; mas que diferença entre meu estado de então e o de hoje! Naquele tempo a matéria me apertava ainda com sua rede inflexível; eu queria me desprender de uma maneira mais absoluta, e não podia. Hoje estou livre; um vasto campo, o campo do desconhecido, se abre diante de mim, e espero, com vossa ajuda e a dos bons Espíritos aos quais me recomendo, avançar e me penetrar o mais rapidamente possível dos sentimentos que é preciso experimentar, e dos atos que é preciso realizar para galgar o caminho da prova e merecer o mundo das recompensas. Que majestade! Que grandeza! É quase um sentimento de terror que domina quando, fracos como somos, queremos fixar as sublimes claridades.
P. Numa outra vez ficaremos felizes de continuar esta conversa, quando quiserdes voltar ao meio de nós. – R. Respondi sucintamente e sem sequência às vossas diferentes perguntas. Não pedi demasiado ao vosso fiel discípulo: ainda não estou inteiramente livre. Conversar, conversar mais seria minha felicidade; meu guia modera meu entusiasmo, e já pude apreciar suficientemente sua bondade e sua justiça para me submeter inteiramente à sua decisão, por mais que lamente ser interrompido. Consolo-me pensando que poderei frequentemente vir assistir incógnito às vossas reuniões. Às vezes falarei convosco; amo-vos e quero prová-lo. Mas outros Espíritos mais avançados do que eu reclamam a prioridade, e devo apagar-me diante daqueles que tiveram a bondade de permitir ao meu Espírito dar livre curso à torrente de pensamentos que eu reunira.
Deixo-vos, amigos, e devo agradecer duplamente, não só a vós, espíritas, que me chamastes, mas também a esse Espírito que teve a bondade de permitir que eu tomasse seu lugar, e que, quando vivo, tinha o nome ilustre de Pascal.
Aquele que foi e será sempre o mais devotado de vossos adeptos. Dr. VIGNAL.
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* Ver a Revista Espírita do mês de março de 1860.
Victor Lebufle
Jovem piloto da barra, pertencendo ao porto do Havre, morto com a idade de vinte anos. Morava com a mãe, pobre pequena comerciante, à qual prodigalizava os cuidados mais ternos e afetuosos, e sustentava com o produto do seu rude trabalho. Nunca foi visto frequentando cabarés, nem se entregando aos excessos tão frequentes na sua profissão, pois não queria subtrair a menor parte de seu ganho do piedoso uso ao qual o consagrava. Todo o tempo não empregado em seu serviço, ele o dava à mãe para lhe poupar a fadiga. Há muito tempo sofrendo da doença da qual sentia que devia morrer, ocultava seus sofrimentos com medo de lhe causar inquietação e que ela mesma quisesse encarregar-se do seu trabalho. Esse jovem precisava de um grande patrimônio de qualidades naturais, e de uma grande força de vontade para resistir, na idade das paixões, aos perniciosos aliciamentos do meio onde vivia. Ele tinha uma piedade sincera, e sua morte foi edificante.
Na véspera de sua morte ele exigiu da mãe que fosse repousar um pouco, dizendo que ele mesmo sentia necessidade de dormir. Esta teve então uma visão; encontrava-se, disse ela, numa grande escuridez; depois viu um ponto luminoso que crescia pouco a pouco, e o quarto ficou iluminado por uma brilhante claridade, da qual se destacou a figura de seu filho, radiosa e elevando-se no espaço infinito. Ela compreendeu que o fim dele estava próximo; com efeito, no dia seguinte sua bela alma deixara a terra, enquanto seus lábios murmuravam uma prece.
Uma família espírita que conhecia sua bela conduta e se interessava pela mãe, que ficou sozinha, tivera a intenção de evocá-lo pouco tempo após sua morte, mas ele se manifestou espontaneamente pela comunicação seguinte:
“Desejais saber o que eu sou agora: bem-aventurado, oh! bem aventurado! Não leveis em conta os sofrimentos e as angústias, pois eles são a fonte de bênçãos e de felicidade além-túmulo. Felicidade! Não compreendeis o que essa palavra significa. As felicidades da terra estão tão distantes do que nós experimentamos, quando voltamos ao Mestre com uma consciência pura, com a confiança do servidor que cumpriu bem o seu dever, e que aguarda cheio de alegria o assentimento daquele que é tudo!
Oh! meus amigos, a vida é penosa e difícil, se não olhardes o fim; mas eu vos digo em verdade, quando vierdes para o meio de nós, se vossa vida foi segundo a lei de Deus, vós sereis recompensados além, muito além dos sofrimentos e dos méritos que credes ter ganhado para o céu. Sede bons, sede caridosos, dessa caridade desconhecida por muitos homens, que se chama benevolência. Socorrei vossos semelhantes; fazei por eles mais do que gostaríeis que se fizesse por vós, pois ignorais a miséria íntima, e conheceis a vossa. Socorrei minha mãe, minha pobre mãe, meu único pesar da terra. Ela deve suportar outras provas, e é preciso que chegue ao céu. Adeus, vou vê-la.” VICTOR.
O guia do médium. – Os sofrimentos suportados durante uma encarnação terrestre não são sempre uma punição. Os Espíritos que, pela vontade de Deus, vêm cumprir uma missão na terra, como aquele que acaba de se comunicar convosco, são felizes por suportar males que, para outros, são uma expiação. O sono os retempera junto do Altíssimo, e dá-lhes a força de suportar tudo para sua maior glória. A missão deste Espírito, em sua última existência, não era uma missão brilhante; mas embora tenha sido obscura, ele só teve mais mérito por isso, porque não podia ser estimulado pelo orgulho. Ele tinha primeiro um dever de reconhecimento a cumprir para com aquela que foi sua mãe; devia em seguida mostrar que, nos piores meios, podem achar-se almas puras, de sentimentos nobres e elevados, e que com a vontade se pode resistir a todas as tentações. É uma prova de que as qualidades têm uma causa anterior, e seu exemplo não terá sido estéril.
A Sra. Anais Gourdon
Mulher muito jovem, notável pela doçura de seu caráter e pelas mais eminentes qualidades morais, morta em dezembro de 1860. Pertencia a uma família de trabalhadores nas minas de carvão dos arredores de Saint-Étienne, circunstância importante para apreciar sua posição como Espírito.
Evocação. – R. Estou aqui.
P. Vosso marido e vosso pai me pediram para vos chamar, e ficarão muito felizes por ter de vós uma comunicação.
– R. Fico bem feliz também por dá-la a eles.
P. Por que fostes tirada tão jovem da afeição de vossa família?
– R. Porque terminava minhas provas terrestres.
P. Ides vê-los às vezes? – R. Oh! estou frequentemente perto deles.
P. Sois feliz como Espírito? – R. Sou feliz, espero, aguardo, amo; os céus não têm terror para mim, e aguardo com confiança e amor que as asas brancas nasçam em mim.
P. O que entendeis por essas asas? – R. Entendo tornar-me puro Espírito e resplandecer como os mensageiros celestes que deslumbram.
Observação: As asas dos anjos, arcanjos, serafins que são puros Espíritos não são evidentemente senão um atributo imaginado pelos homens para representar a rapidez com a qual eles se transportam, pois sua natureza etérea os dispensa de qualquer suporte para percorrer os espaços. Eles podem, no entanto, aparecer aos homens com esse acessório para corresponder ao pensamento deles, como outros Espíritos tomam a aparência que tinham na terra para se fazerem reconhecer.
P. Vossos pais podem fazer algo que vos seja agradável?
– R. Esses queridos seres podem não me entristecer mais pela visão de suas lamentações, visto que sabem que não estou perdida para eles; que meu pensamento lhe seja doce, leve e perfumado com a recordação deles. Passei como uma flor, e nada de triste deve subsistir de minha rápida passagem.
P. Como explicar que vossa linguagem seja tão poética e tão pouco em relação com a posição que tínheis na terra? – R. É que é a minha alma que fala. Sim, eu tinha conhecimentos adquiridos, e frequentemente Deus permite que Espíritos delicados se encarnem entre os homens mais rudes para lhes fazer pressentir as delicadezas que eles alcançarão e compreenderão mais tarde.
Observação: Sem essa explicação tão lógica, e tão conforme à solicitude de Deus pelas suas criaturas, dificilmente ter-se-ia dado conta do que, à primeira vista, poderia parecer uma anomalia. Com efeito, o que haverá de mais gracioso e de mais poético do que a linguagem do Espírito dessa jovem mulher criada no meio dos mais rudes trabalhos? A contrapartida se vê com frequência; são Espíritos inferiores encarnados entre os homens mais avançados, mas com um objetivo oposto; é em vista do próprio avanço deles que Deus os põe em contato com um mundo esclarecido, e às vezes também para servir de prova a esse mesmo mundo. Qual outra filosofia pode resolver tais problemas?
Maurice Gontran
Era filho único, morto de tuberculose, aos dezoito anos. Inteligência rara, razão precoce, grande amor pelo estudo, caráter doce, afetuoso e simpático, possuía todas as qualidades que dão as mais legítimas esperanças de um brilhante futuro. Seus estudos haviam terminado cedo com o maior sucesso, e ele se preparava para a Escola Politécnica. Sua morte foi para os pais a causa de uma dessas dores que deixam marcas profundas, e tanto mais penosas quanto tendo tido sempre uma saúde delicada, eles atribuíam seu fim prematuro ao trabalho ao qual o haviam impelido, e censuravam-se por isso. “De que, diziam eles, lhe serve agora tudo o que aprendeu? Mais valera que tivesse ficado ignorante, pois não precisava disso para viver, e sem dúvida ainda estaria entre nós; teria sido a consolação de nossa velhice.” Se eles tivessem conhecido o Espiritismo, teriam sem dúvida raciocinado de outra maneira. Mais tarde, encontraram nele a verdadeira consolação. A comunicação seguinte foi dada pelo filho a um dos amigos dos pais, alguns meses após a morte:
P. Meu caro Maurice, o terno apego que tínheis por vossos pais faz com que eu não duvide de vosso desejo de restaurar a coragem deles, se isso está em vosso poder. A tristeza, o desespero em que vossa morte os mergulhou, altera visivelmente a saúde deles e os faz ter aversão pela vida. Algumas boas palavras vossas poderão sem dúvida fazer renascer neles a esperança.
R. Meu velho amigo, aguardava com impaciência a ocasião que me ofereceis de me comunicar. A dor de meus pais aflige-me, mas ela se acalmará quando eles tiverem a certeza de que não estou perdido para eles; deveis dedicar-vos a convencê-los desta verdade, e conseguireis certamente. Era preciso este acontecimento para levá-los a uma crença que fará a felicidade deles, pois impedi-los-á de murmurar contra os decretos da Providência. Meu pai, vós o sabeis, era muito cético a propósito da vida futura; Deus permitiu que ele tivesse esta aflição para tirá-lo de seu erro.
Nós nos reencontraremos aqui, neste mundo onde não se conhecem mais os desgostos da vida, e no qual os precedi; mas dizei-lhes claramente que a satisfação de me rever aqui lhes seria recusada como punição de sua falta de confiança na bondade de Deus. Ser-me-ia mesmo proibido, de agora em diante, me comunicar com eles enquanto estiverem na terra. O desespero é uma revolta contra a vontade do Onipotente, e que é sempre punida pelo prolongamento da causa que trouxe esse desespero, até que haja enfim submissão. O desespero é um verdadeiro suicídio, pois mina as forças do corpo, e aquele que abrevia seus dias com o pensamento de escapar mais cedo às constrições da dor, prepara para si as mais cruéis decepções; ao contrário, é para manter as forças do corpo que é preciso trabalhar para suportar mais facilmente o peso das provas.
Meus bons pais, é a vós que me dirijo. Desde que deixei meus restos mortais, não cessei de estar junto de vós, e estou aí mais frequentemente do que quando vivia na terra. Consolai-vos, portanto, pois não morri; estou mais vivo do que vós; só meu corpo morreu, mas meu Espírito vive sempre. Ele é livre, feliz, doravante ao abrigo das doenças, das enfermidades e da dor. Em vez de vos afligirdes, regozijai-vos por me saber num meio isento de preocupações e de alarmes, onde o coração está inebriado de uma alegria pura e sem mistura.
Oh! meus amigos, não lastimeis aqueles que morrem prematuramente; é uma graça que Deus lhes concede, poupar-lhes as atribulações da vida. Minha existência não devia prolongar-se por muito mais tempo desta vez na terra; eu adquirira aí o que devia adquirir a fim de me preparar para cumprir mais tarde uma missão mais importante. Se tivesse vivido aí longos anos, sabeis a que perigos, a que seduções teria sido exposto? Sabeis que se, não sendo ainda bastante forte para resistir, eu tivesse sucumbido, podia ser para mim um atraso de vários séculos? Por que então lamentar o que me é vantajoso? Uma dor inconsolável, neste caso, acusaria uma falta de fé que não poderia ser legitimada senão pela crença no nada. Oh! sim, eles são de lamentar, esses que têm essa crença desesperante, pois para eles não há consolação possível; os seres que lhes são caros estão perdidos para sempre; a sepultura levou-lhes a última esperança!
P. Vossa morte foi dolorosa?
R. Não, meu amigo, só sofri antes de morrer por causa da doença que me levou, mas esse sofrimento diminuía à medida que o último momento se aproximava; depois, um dia, adormeci sem pensar na morte. Sonhei; oh! um sonho delicioso! Sonhava que estava curado; não sofria mais, respirava a plenos pulmões e com volúpia um ar perfumado e fortalecedor; era transportado através do espaço por uma força desconhecida; uma luz brilhante resplandecia à minha volta, mas sem me cansar a vista. Vi meu avô; ele não tinha mais a figura descarnada, mas sim um ar de frescor e de juventude; estendeu-me os braços e me apertou efusivamente contra o coração. Uma multidão de outras pessoas, de rosto sorridente, o acompanhava; todas me acolhiam com bondade e benevolência; parecia-me reconhecê-las, estava feliz de revê-las, e todos juntos trocávamos palavras e provas de amizade. Pois bem! o que eu acreditava ser um sonho era a realidade; eu não devia mais despertar na terra: despertara no mundo dos Espíritos.
P. Não teria vossa doença sido causada por vossa assiduidade excessiva ao estudo?
R. Oh! não, ficai bem persuadido disso. O tempo que eu devia viver na terra estava marcado, e nada me podia reter aí por mais tempo. Meu Espírito, nos seus momentos de desprendimento, sabia-o bem, e estava feliz pensando em sua libertação próxima. Mas o tempo que passei aí não foi sem proveito, e congratulo-me hoje por não o ter perdido. Os estudos sérios que fiz fortaleceram minha alma e aumentaram meus conhecimentos; sempre é algo aprendido, e se não pude aplicá-los em minha curta estada entre vós, aplicá-los-ei mais tarde com maior proveito.
Adeus, caro amigo, vou para junto de meus pais, dispô-los a receber esta comunicação. MAURICE
Capítulo III - Espíritos em uma condição média
Joseph Bré
Morto em 1840, evocado em Bordeaux em 1862 pela neta.
O homem honesto segundo Deus ou segundo os homens.
1. Querido avô, quereis dizer-me como estais entre os Espíritos, e dar-me alguns detalhes instrutivos para nosso avanço? – R. Tudo o que quiseres, minha querida filha. Estou expiando minha falta de fé; mas a bondade de Deus é grande: ele leva em conta as circunstâncias. Sofro, não como poderias entender, mas de arrependimento por não ter empregado bem meu tempo na terra.
2. Como não o empregastes bem? Fostes sempre um homem honesto. – R. Sim, do ponto de vista dos homens; mas há um abismo entre o homem honesto perante os homens, e o homem honesto perante Deus. Tu queres instruir-te, querida filha; vou tentar fazer-te sentir a diferença. Entre vós, considera-se como homem honesto aquele que respeita as leis de seu país, respeito elástico para muitos; aquele que se não faz mal ao próximo tomando-lhe ostensivamente seus bens; mas toma frequentemente sem escrúpulo sua honra, sua felicidade, desde que a lei, ou a opinião pública, não possam alcançar o culpado hipócrita. Quando se pôde mandar gravar na sua lápide a série interminável de virtudes que são enaltecidas, acredita-se ter pago sua dívida para com a humanidade. Que engano! Para ser honesto perante Deus não basta não ter infringido as leis dos homens, é preciso antes de tudo não ter transgredido as leis divinas.
O homem honesto perante Deus é aquele que, cheio de devoção e amor, dedica sua vida ao bem, ao progresso de seus semelhantes; aquele que, animado por um zelo inspirado no objetivo, é ativo na vida: ativo no cumprimento da tarefa material que lhe é imposta, pois deve ensinar a seus irmãos o amor ao trabalho; ativo nas boas obras, pois não deve esquecer que é apenas um servidor ao qual o senhor pedirá um dia contas do uso de seu tempo; ativo no objetivo, pois deve pregar pelo exemplo o amor ao Senhor e ao próximo. O homem honesto perante Deus deve evitar cuidadosamente essas palavras mordazes, veneno escondido sob flores, que destrói as reputações e muitas vezes mata o homem moral ao cobri-lo de ridículo.
O homem honesto perante Deus deve ter sempre o coração fechado ao menor fermento de orgulho, de inveja, de ambição. Ele deve ser paciente e doce com os que o atacam; deve perdoar do fundo do coração, sem esforço e, sobretudo, sem ostentação, a todo aquele que o ofendeu; deve amar seu criador em todas as suas criaturas; deve, por fim, pôr em prática este resumo tão conciso e tão grande dos deveres do homem: amar a Deus acima de todas as coisas e seu próximo como a si mesmo.
Eis, minha querida filha, aproximadamente o que deve ser o homem honesto perante Deus. Pois bem! Será que eu fiz tudo isso? Não; faltaram-me muitas dessas condições, confesso-o aqui sem enrubescer; não tive a atividade que o homem deve ter; o esquecimento do Senhor levou-me a outros esquecimentos que, mesmo não sendo passíveis de punição pela lei humana, não deixam de ser prevaricações pela lei de Deus. Sofri bastante por isso quando o senti; eis porque espero hoje, mas com a consoladora esperança na bondade de Deus que vê meu arrependimento. Diz isso, querida filha; repete-o àqueles que têm a consciência pesada: que eles cubram suas faltas à força de boas obras, e a misericórdia divina se deterá na superfície; seus olhos paternos contarão as expiações, e sua mão poderosa apagará as faltas.
HÉLÈNE.
O Marquês de Saint-Paul.
Morto em 1860, evocado a pedido de sua irmã, membro da Sociedade de Paris, em 16 de maio de 1861.
1. Evocação.
— Aqui estou.
2. — A senhora vossa irmã pediu-nos para vos evocar, embora ela seja médium, mas ainda não está suficientemente formada para estar bem segura de si mesma.
— Tentarei responder o melhor que puder.
3. — Ela deseja saber primeiramente se sois feliz.
— Sou errante, e este estado transitório nunca traz nem a felicidade, nem o castigo absolutos.
4. — Demorastes muito tempo para vos reconhecerdes?
— Fiquei muito tempo no estado de perturbação, e não saí dele a não ser para bendizer a piedade daqueles que não me esqueciam e oravam por mim.
— Podeis fazer uma apreciação da duração dessa perturbação?
— Não.
5. — Quais de vossos parentes reconhecestes primeiramente?
— Reconheci minha mãe e meu pai, que, ambos, me receberam ao despertar; eles me iniciaram à vida nova.
6. — Como explicar que no fim de vossa doença parecíeis conversar com aqueles que havíeis amado na terra?
— Porque tive, antes de morrer, a revelação do mundo que ia habitar. Eu era vidente antes de morrer, e meus olhos se velaram na passagem da separação definitiva do corpo, porque os laços carnais ainda eram muito vigorosos.
7. — Como explicar que vossas lembranças de infância pareciam voltar preferencialmente?
— Porque o começo está mais próximo do objetivo do que o meio da vida.
— Como o explicais?
— Quer dizer que os moribundos se lembram e veem, como numa miragem de consolação, os jovens e puros anos.
Observação: Provavelmente, é por um motivo providencial semelhante que os velhos, à medida que se aproximam do fim da vida, têm às vezes uma lembrança tão precisa dos mínimos detalhes de seus primeiros anos.
8. — Por que, ao falar de vosso corpo, faláveis sempre na terceira pessoa?
— Porque eu era vidente, como vos disse, e sentia nitidamente as diferenças que existem entre o físico e o moral; essas diferenças, ligadas entre si pelo fluido da vida, tornam-se muito nítidas aos olhos dos moribundos clarividentes.
Observação: Essa foi uma particularidade que a morte desse senhor apresentou. Em seus últimos momentos, dizia sempre: “Ele tem sede, é preciso dar-lhe de beber; ele tem frio, é preciso aquecê-lo; ele sofre em tal lugar, etc.” E quando lhe diziam: “Mas sois vós que tendes sede”, ele respondia: “Não, é ele.” Aqui desenham-se perfeitamente as duas existências; o eu pensante está no Espírito e não no corpo; o Espírito, já desprendido em parte, considerava seu corpo como uma outra individualidade que não era dele propriamente falando; era portanto a seu corpo que era preciso dar de beber e não a ele, Espírito. Este fenômeno se observa também em certos sonâmbulos.
9. — O que dissestes de vosso estado errante, e da duração de vossa perturbação, levaria a crer que não sois muito feliz, e, no entanto, vossas qualidades deveriam fazer supor o contrário. Há, aliás, Espíritos errantes que são felizes, como há os infelizes.
— Estou num estado transitório; as virtudes humanas adquirem aqui seu verdadeiro preço. Sem dúvida, meu estado é mil vezes preferível ao da encarnação terrestre, mas sempre tive em mim as aspirações ao verdadeiro bem e ao verdadeiro belo, e minha alma não ficará saciada a não ser quando voar aos pés do seu Criador.
Sr. Cardon.
Médico, morto em setembro de 1862.
(Sociedade de Paris. Médium: Sr. Leymarie.)
O Sr. Cardon passara uma parte da vida na marinha mercante, na qualidade de médico de baleeiro, e extraíra daí hábitos e ideias um pouco materiais; aposentado no vilarejo de J..., exercia aí a modesta profissão de médico rural. Havia algum tempo, adquirira a certeza de que sofria de uma hipertrofia do coração, e, sabendo que essa doença é incurável, o pensamento da morte mergulhava-o numa sombria melancolia da qual nada o podia distrair. Aproximadamente dois meses antes, predisse seu fim num dia pré-determinado; quando se viu prestes a morrer, reuniu a família à sua volta para lhe dizer um último adeus. Sua mulher, sua mãe, seus três filhos e outros parentes estavam reunidos em volta de sua cama; no momento em que a mulher tentava erguê-lo, ele caiu bruscamente, tornou-se de um azul lívido, os olhos fecharam-se, e foi dado por morto; a mulher colocou-se diante dele para ocultar esse espetáculo aos filhos. Depois de alguns minutos ele reabriu os olhos; seu rosto, por assim dizer iluminado, tomou uma expressão de radiosa beatitude, e ele exclamou: Oh! meus filhos, como é belo! Como é sublime! Oh! a morte! Que ventura! Que doce coisa! Eu estava morto, e senti minha alma se elevar bem alto, bem alto; mas Deus me permitiu voltar para vos dizer: “Não temais a morte, é a libertação...” Se pudesse descrever-vos a magnificência do que vi e as impressões de que me senti penetrado! Mas não poderíeis compreender... Oh! meus filhos, conduzi-vos sempre de maneira a merecer essa inefável felicidade, reservada aos homens de bem; vivei segundo a caridade; se tiverdes algo, dai uma parte àqueles que carecem do necessário... Minha querida mulher, deixo-te numa posição que não é boa; devem-nos dinheiro, mas peço-te, não atormentes aqueles que nos devem; se eles estiverem em dificuldades, aguarda que possam quitar a dívida, e aqueles que não puderem, faz esse sacrifício por eles: Deus te recompensará. Tu, meu filho, trabalha para sustentar a tua mãe; sê sempre honesto e toma cuidado para não fazer nada que possa desonrar a nossa família. Toma esta cruz que era da minha mãe; não a abandones, e que ela te relembre sempre meus últimos conselhos... Meus filhos, ajudai-vos e apoiai-vos mutuamente; que a boa harmonia reine entre vós; não sejais vaidosos, nem orgulhosos; perdoai aos vossos inimigos, se quiserdes que Deus vos perdoe...” Depois, tendo mandado aproximarem-se os filhos, estendeu as mãos para eles, e acrescentou: “Meus filhos, eu vos bendigo.” E seus olhos se fecharam, desta vez para sempre; mas seu semblante conservou uma expressão tão imponente que, até o momento em que foi enterrado, uma multidão considerável veio contemplá-lo com admiração.
Tendo estes interessantes detalhes nos sido transmitidos por um amigo da família, pensamos que esta evocação podia ser instrutiva para todos, ao mesmo tempo em que seria útil ao Espírito.
1. Evocação.
— Estou perto de vós.
2. — Relataram-nos vossos últimos instantes que nos encheram de admiração. Teríeis a bondade de nos descrever, melhor do que fizestes, o que vistes durante o intervalo do que se poderia chamar vossas duas mortes.
— O que eu vi, poderíeis compreendê-lo? Não sei, pois não poderia encontrar expressões capazes de tornar compreensível o que pude ver durante os poucos instantes em que me foi possível deixar meus restos mortais.
3. — Vós vos dais conta de onde estivestes? Foi longe da terra, num outro planeta ou no espaço?
— O Espírito não conhece o valor das distâncias tais como vós as considerais. Levado por não sei que agente maravilhoso, vi o esplendor de um céu como só nossos sonhos poderiam realizar. Essa corrida através do infinito ocorreu tão rapidamente que não posso precisar os instantes usados pelo meu Espírito.
4. Atualmente, gozais da felicidade que entrevistes?
— Não; gostaria de poder gozá-la, mas Deus não pode me recompensar assim. Revoltei-me demasiadas vezes contra os pensamentos benditos que meu coração ditava, e a morte me parecia uma injustiça. Médico incrédulo, eu extraíra da arte de curar uma aversão contra a segunda natureza que é nosso movimento inteligente, divino; a imortalidade da alma era uma ficção própria para seduzir as naturezas pouco elevadas; no entanto, o vazio me aterrorizava, pois maldisse muitas vezes esse agente misterioso que atinge sempre e sempre. A filosofia me desencaminhara, sem me fazer compreender toda a grandeza do Eterno que sabe repartir a dor e a alegria para o ensinamento da humanidade.
5. — Quando de vossa morte verdadeira, reconheceste-vos imediatamente?
— Não; reconheci-me durante a transição que meu Espírito suportou para percorrer os lugares etéreos; mas após a morte real, não; foram precisos alguns dias para meu despertar.
Deus me concedera uma graça; vou dizer-vos a razão dela: Minha incredulidade inicial não existia mais; antes de minha morte, eu cria, pois após ter cientificamente sondado a matéria grave que me fazia perecer, eu não encontrara, esgotadas as razões terrestres, senão a razão divina; ela me inspirara, consolara, e minha coragem era mais forte do que a dor. Bendizia o que maldissera; o fim me parecia a libertação. O pensamento de
Deus é grande como o mundo! Oh! Que supremo consolo na prece que dá enternecimentos inefáveis; ela é o elemento mais seguro de nossa natureza imaterial; por ela compreendi, acreditei firmemente, soberanamente, e é por isso que Deus, escutando minhas ações benditas, teve a bondade de me recompensar antes de acabar minha encarnação.
6. Poder-se-ia dizer que na primeira vez estáveis morto?
— Sim e não; tendo o Espírito deixado o corpo, naturalmente a carne se extinguia; mas ao retomar posse de minha morada terrestre, a vida voltou ao corpo que sofrera uma transição, um adormecimento.
7. — Naquele momento sentíeis os laços que vos uniam a vosso corpo?
— Sem dúvida; o Espírito tem um laço difícil de romper, ele precisa do último estremecimento da carne para voltar à sua vida natural.
8. — Como explicar que, por ocasião de vossa morte aparente e durante alguns minutos, vosso Espírito tenha podido desprender-se instantaneamente e sem perturbação, ao passo que a morte real foi seguida por perturbação de vários dias? Parece que, no primeiro caso, subsistindo mais os laços entre a alma e o corpo do que no segundo, o desprendimento devia ser mais lento, e foi o contrário que aconteceu.
— Vós fizestes com frequência a evocação de um Espírito encarnado, recebestes dele respostas reais; eu estava na posição desses Espíritos. Deus me chamava, e seus servidores me haviam dito: “Vem…”. Obedeci, e agradeço a Deus a graça especial que ele teve a bondade de me conceder; pude ver o infinito de sua grandeza e dar-me conta dela. Obrigado a vós que me permitistes, antes da morte real, ensinar aos meus para que eles sejam boas e justas encarnações.
9. — De onde vos vinham as belas e boas palavras que, por ocasião de vossa volta à vida, dirigistes a vossa família?
— Elas eram o reflexo do que eu vira e ouvira; os bons Espíritos inspiravam minha voz e animavam meu rosto.
10. — Que impressão acreditais que vossa revelação tenha tido sobre os assistentes e sobre vossos filhos em particular?
— Impressionante, profunda; a morte não é mentirosa; os filhos, por mais ingratos que possam ser, se inclinam diante da encarnação que parte. Se se pudesse escrutar o coração dos filhos, perto de um túmulo entreaberto, não se sentiriam bater senão sentimentos verdadeiros, tocados profundamente pela mão secreta dos Espíritos que dizem a todos os pensamentos: Temei se estais na dúvida; a morte é a reparação, a justiça de Deus, e asseguro-vos, apesar dos incrédulos, que meus amigos e minha família acreditarão nas palavras que minha voz pronunciou antes de morrer. Eu era o intérprete de um outro mundo.
11. — Dissestes que não gozáveis da felicidade que entrevistes; sois desgraçado?
— Não, visto que eu cria antes de morrer, e isso em minha alma e consciência. A dor aperta aqui embaixo, mas ela eleva para o futuro espírita. Notai que Deus levou em conta minhas preces e minha crença absoluta nele; estou no caminho da perfeição, e chegarei ao objetivo que ele me permitiu entrever. Orai, meus amigos, por esse mundo invisível que preside aos vossos destinos; essa troca fraterna é caridade; é uma alavanca poderosa que põe em comunhão os Espíritos de todos os mundos.
12. — Gostaríeis de dirigir algumas palavras a vossa mulher e a vossos filhos?
— Peço a todos os meus para crerem em Deus poderoso, justo, imutável; na prece que consola e alivia; na caridade que é o ato mais puro da encarnação humana; que eles se lembrem de que se pode dar pouco: o óbolo do pobre é o mais meritório diante de Deus, que sabe que um pobre dá muito ao dar pouco; é preciso que o rico dê grandemente e muitas vezes para merecer tanto quanto ele.
O futuro é a caridade, a benevolência em todas as ações; é crer que todos os Espíritos são irmãos, nunca se prevalecendo de todas as pueris vaidades. Família bem-amada, terás rudes provas; mas enfrenta-as corajosamente, pensando que Deus as vê.
Dizei frequentemente esta prece: Deus de amor e de bondade, que dá tudo e sempre, concede-nos essa força que não recua diante de nenhuma pena; torna-nos bons, doces e caridosos, pequenos pela fortuna, grandes pelo coração. Que nosso Espírito seja espírita na terra para melhor vos compreender e vos amar. Que o vosso nome, ó meu Deus, emblema de liberdade, seja o objetivo consolador de todos os oprimidos, de todos aqueles que precisam amar, perdoar e crer.
Cardon.
Eric Stanislas
(Comunicação espontânea; sociedade de Paris; agosto de 1863.)
Como as emoções sentidas vivamente por corações calorosos nos trazem felicidade! Ó doces pensamentos que vindes abrir uma via de salvação a tudo que vive, a tudo que respira material e espiritualmente, que vosso bálsamo salvador não cessa de espalhar abundantemente sobre vós e sobre nós! Que expressões escolher para traduzir a felicidade que sentem todos os vossos irmãos de além-túmulo na contemplação do puro amor que vos une a todos! Ah! Irmãos, quanto bem por toda a parte, quantos doces sentimentos elevados e simples como vós, como vossa doutrina, sois chamados a semear na longa estrada que ainda tendes de percorrer; mas também quanto tudo isso vos será devolvido antes mesmo do momento em que tiverdes esse direito!
Assisti a toda esta reunião noturna; escutei, ouvi, compreendi, e vou poder também, por minha vez, cumprir meu dever e instruir a classe dos Espíritos imperfeitos.
Escutai: eu estava longe de ser feliz; mergulhado na imensidão, no infinito, meus sofrimentos eram tanto mais agudos quanto eu não podia me dar conta exata deles. Deus seja louvado! Ele me permitiu vir a um santuário que os malvados não podem transpor impunemente. Amigos, quão reconhecido vos sou, quanta força absorvi entre vós! Oh! homens de bem, reuni-vos com frequência; instruí, pois não poderíeis imaginar quantos frutos trazem todas as reuniões sérias que fazeis entre vós; os Espíritos que têm ainda muitas coisas que aprender, os que permanecem voluntariamente inativos, preguiçosos e esquecidos de seus deveres podem se encontrar, seja por uma circunstância fortuita, seja de outro modo, entre vós; atingidos por um choque terrível, eles podem, e é o que ocorre muitas vezes, dobrar-se sobre si mesmos, reconhecer-se, entrever o objetivo a alcançar, e fortalecidos pelo exemplo que lhes dais, buscar os meios que podem fazê-los sair do estado penoso em que se encontram. Torno-me com muita alegria o intérprete das almas sofredoras, pois é a homens de coração que me dirijo e sei que não sou repelido.
Aceitai, portanto, mais uma vez, ó homens generosos, receber a expressão de meu reconhecimento particular e a de todos os nossos amigos a quem fizestes, talvez sem o prever, tanto bem.
ÉRIC STANISLAS.
O guia do médium. – Meus filhos, é um Espírito que foi muito infeliz, porque esteve perdido por muito tempo. Agora compreendeu seus erros, arrependeu-se, e enfim voltou seu olhar para Deus que desconhecera; sua posição não é a felicidade, mas ele aspira a ela e não sofre mais. Deus lhe permitiu vir escutar, e depois ir a uma esfera inferior instruir e fazer avançar os Espíritos que, como ele, transgrediram as leis do Eterno; é a reparação que lhe é pedida. Doravante ele conquistará a felicidade, porque tem essa vontade.
Um mês após sua morte.
- R. Durante minha vida terrestre, eu era o que se chama, de maneira geral, uma boa pessoa, mas antes de tudo amava meu bem-estar; compassiva por natureza, talvez não tivesse sido capaz de um sacrifício penoso para aliviar um infortúnio. Hoje tudo mudou; sou ainda eu, mas o eu de outrora sofreu modificações. Adquiri; vejo que não há outras posições nem condições senão o mérito pessoal no mundo dos invisíveis, onde um pobre caridoso e bom está acima do rico orgulhoso que o humilhava com sua esmola. Velo especialmente pela classe dos afligidos pelos tormentos de família, a perda de pais ou de fortuna; tenho a missão de consolá-los e encorajá-los, e estou feliz de fazê-lo.
SÃO LUÍS.
Capítulo IV - Espíritos sofredores
GEORGES.
NOVEL.
Observação: Como o médium não se dera conta da insistência do Espírito que lhe solicitara ir rezar sobre o seu túmulo, negligenciara fazê-lo. Todavia foi lá mais tarde, e recebeu ali a comunicação seguinte:
lançar um olhar para Deus.
R. Nasci numa condição elevada. Tinha tudo aquilo que os homens consideram como a fonte da felicidade. Rica, fui egoísta; bela, fui sedutora, indiferente e dissimulada; nobre, fui ambiciosa. Humilhei com meu poder aqueles que não se prosternavam suficientemente diante de mim, e humilhava ainda aqueles que se achavam sob meus pés, sem pensar que a cólera do Senhor humilha também, cedo ou tarde, as frontes mais elevadas.
“Se, por muito tempo, meu Espírito vagueou com meu corpo, é porque eu tinha que expiar. Segui o caminho reto se quiserdes que Deus retire rapidamente vosso Espírito de seu envoltório. Vivei no amor a ele; orai, e a morte, tão horrenda para alguns, será amenizada para vós, visto que sabeis que vida vos aguarda. Eu sucumbi no mar, e esperaram-me durante muito tempo. Não poder desprender-me do meu corpo era para mim uma terrível prova; é por isso que preciso das vossas preces, de vós que entrastes na crença que salva, de vós que podeis orar ao Deus justo por mim. Eu me arrependo e espero que ele tenha a bondade de me perdoar. Foi em 6 de agosto que meu corpo foi reencontrado; eu era um pobre marinheiro, e pereci há muito tempo. Orai por mim!”
PASCAL LAVIC.
Rua de la Charité, n014.
SÃO LUÍS.
GEORGES.
SÃO LUÍS.
CLAIRE.
Capítulo V - Suicidas
BENJAMIN C...
C...
Em francês tranchet: faca de sapateiro, para cortar couro. (N. R.)
Observação: Vê-se ainda aí uma nova prova da justiça distributiva que preside à punição dos culpados, segundo o grau da responsabilidade. Na circunstância presente, a primeira falta é da moça que cultivara em Louis um amor que ela não compartilhava, e do qual troçava; ela arcará, portanto, com a maior parte da responsabilidade. Quanto ao rapaz, é punido também pelo sofrimento que suporta; mas sua pena é leve, porque cedeu apenas a um movimento irrefletido e a um momento de exaltação, em vez da fria premeditação dos que se suicidam para se subtrair às provas da vida.
Observação: Há aqui toda uma ordem de ideias. Pergunta-se frequentemente como pode haver materialistas, visto que tendo já passado pelo mundo espiritual, eles deveriam ter a intuição dele; ora, é precisamente essa intuição que é recusada a certos Espíritos que conservaram seu orgulho, e não se arrependeram de suas faltas. Sua prova consiste em adquirir, durante a vida corpórea, e por sua própria razão, a prova da existência de Deus e da vida futura que eles têm incessantemente sob dos olhos; mas com frequência a presunção de nada admitir acima de si leva a melhor, e eles arcam com a pena até que, tendo domado seu orgulho, se rendam por fim à evidência.
nenhuma alusão, pois de outro modo era bem o reflexo de seu caráter. Isso nos deixava algumas dúvidas sobre sua identidade.
grande coisa com isso, a não ser ficar livre de minhas preocupações materiais, mas para reencontrar outras mais graves, mais penosas na minha posição de Espírito, cujo fim não prevejo.
direta, mas está muito afetado por isso. Ele está sofrendo muito por se ter suicidado, e afasta tanto quanto pode tudo o que lhe recorda esse fim funesto.
Capítulo VI - Criminosos arrependidos
Verger.
Assassino do arcebispo de Paris.
No dia 3 de janeiro de 1857, Monsenhor Sibour, arcebispo de Paris, ao sair da igreja de Saint-Étienne du Mont, foi golpeado mortalmente por um jovem padre chamado Verger. O culpado foi condenado à morte e executado no dia 30 de janeiro. Até o último momento não manifestou pesar, nem arrependimento, nem sensibilidade.
Evocado no próprio dia de sua execução, deu as seguintes respostas:
1. Evocação. – R. Estou ainda retido no meu corpo.
2. Vossa alma não está inteiramente desprendida de vosso corpo? – R. Não... tenho medo... não sei... Aguardai que eu me reconheça... não morri, não é?
3. Arrependeis-vos do que fizestes? – R. Cometi um erro matando; mas fui impelido a isso pelo meu caráter que não podia aguentar as humilhações... Vós me evocareis uma outra vez.
4. Por que quereis ir já embora? – R. Eu teria demasiado medo se o visse; temeria que ele me fizesse o mesmo.
5. Mas não tendes nada a temer visto que vossa alma está separada do vosso corpo; bani toda preocupação: ela não é sensata. – R. Que quereis! Vós sois sempre senhor das vossas impressões? ... não sei onde estou... estou louco.
6. Tentai sossegar. – R. Não posso, visto que estou louco. Esperai! Vou apelar para toda a minha lucidez.
7. Se orásseis, isso poderia vos ajudar a concentrar vossas ideias? – R. Temo... não ouso rezar.
8. Orai, a misericórdia de Deus é grande! Nós vamos orar convosco. – R. Sim, a misericórdia de Deus é infinita; sempre acreditei nisso.
9. Agora, dais-vos melhor conta de vossa posição? – R. É tão extraordinário que ainda não consigo me dar conta.
10. Vedes a vossa vítima? – R. Parece-me ouvir uma voz que se assemelha à dela, e que me diz: Não te quero mal... mas é um efeito da minha imaginação!... Estou louco, afirmo-vos, pois vejo meu próprio corpo de um lado e minha cabeça do outro... e no entanto parece-me que estou vivo, mas no espaço, entre a terra e o que vós chamais o céu... Sinto mesmo o frio de uma faca caindo sobre o meu pescoço... mas é o medo que tenho de morrer.... parece-me que vejo inúmeros Espíritos à minha volta, me olhando com compaixão... eles conversam comigo, mas não os compreendo.
11. Entre esses Espíritos há um cuja presença vos humilha por causa do vosso crime? – R. Eu vos direi que não há senão um que eu temo, é aquele que eu abati.
12. Lembrais-vos de vossas existências anteriores? – R. Não, estou no vago... creio sonhar... mais uma vez; é preciso que eu me reconheça.
13. (Três dias mais tarde.) Reconheceis-vos melhor agora? – R. Sei agora que não sou mais deste mundo, e não o lamento. Lamento o que fiz, mas meu Espírito está mais livre; sei melhor que há uma série de existências que nos dão os conhecimentos úteis para nos tornar perfeitos tanto quanto o pode a criatura.
14. Sois punido pelo crime que cometestes? – R. Sim; lamento o que fiz e sofro por isso.
15. De que maneira sois punido? – R. Sou punido, pois reconheço minha falta e peço perdão a Deus por ela; sou punido pela consciência da minha falta de fé em Deus, e porque sei agora que não devemos cortar os dias de nossos irmãos; sou punido pelo remorso de ter retardado meu avanço perdendo-me, e não ter escutado o grito da minha consciência que me dizia que não era matando que eu chegaria ao meu objetivo; mas eu me deixei dominar pelo orgulho e o ciúme; enganei-me e arrependo-me, pois o homem deve sempre esforçar-se para dominar suas más paixões, e eu não o fiz.
16. Que sentimento experimentais quando vos evocamos? – R. Um prazer e um temor, pois não sou mau.
17. Em que consistem esse prazer e esse temor? – R. Prazer de conversar com os homens, e de poder em parte reparar minha falta confessando-a. Temor que eu não poderia definir, uma espécie de vergonha de ter sido homicida.
18. Gostaríeis de reencarnar nesta terra? – R. Sim, peço isso, e desejo me encontrar constantemente ameaçado de ser morto e ter medo disso. Sendo evocado Monsenhor Sibour, disse que perdoava a seu assassino e rezava pelo seu retorno ao bem. Acrescentou que, embora presente, não se mostrara a ele para não lhe aumentar o sofrimento; o temor de vê-lo, sinal de remorso, já era um castigo.
P. O homem que comete um homicídio sabe, ao escolher sua existência, que se tornará assassino? – R. Não; ele sabe que, escolhendo uma vida de luta, há para ele probabilidade de matar um de seus semelhantes; mas ignora se o fará, pois quase sempre houve nele a luta.
Observação: A situação de Verger, no momento de sua morte, é a de quase todos os que perecem por morte violenta. Como não se opera a separação da alma de uma maneira brusca, eles ficam como que aturdidos e não sabem se estão mortos ou vivos. A visão do arcebispo é-lhe poupada, porque não era necessária para excitar nele o remorso, ao passo que outros, ao contrário, são constantemente perseguidos pelos olhares de suas vítimas.
À enormidade de seu crime, Verger acrescentara o fato de não se ter arrependido dele antes de morrer; estava, portanto, em todas as condições requeridas para incorrer na condenação perpétua. No entanto, mal deixou a terra e o arrependimento penetra sua alma; repudia seu passado e pede sinceramente para repará-lo. Não é o excesso dos sofrimentos que o impele, visto que ainda não teve tempo de sofrer; é, portanto, unicamente o grito de sua consciência que ele não escutou durante a vida e que ouve agora. Então, por que isso não lhe seria creditado? Por que, a alguns dias de distância, o que o teria salvado do inferno não poderia mais fazê-lo? Por que Deus, que teria sido misericordioso antes da morte, seria sem compaixão algumas horas mais tarde? Poderia espantar a rapidez da mudança que se opera às vezes nas ideias de um criminoso endurecido até o último momento, e ao qual a passagem para a outra vida basta para lhe fazer compreender a iniquidade de sua conduta. Esse efeito está longe de ser geral, sem isso não haveria maus Espíritos; o arrependimento é frequentemente muito tardio, assim a pena é prolongada em decorrência disso.
A obstinação no mal durante a vida é por vezes uma consequência do orgulho que recusa dobrar-se e confessar seus erros; depois o homem está sob a influência da matéria que lança um véu sobre suas percepções espirituais, e o fascina. Caído esse véu, uma luz súbita o ilumina, e ele fica como que desembriagado. O pronto retorno a melhores sentimentos é sempre indício de um certo progresso moral realizado que não pede senão uma circunstância favorável para se revelar, ao passo que aquele que persiste no mal mais ou menos tempo após a morte, é incontestavelmente um Espírito mais atrasado, no qual o instinto material asfixia o germe do bem, e que precisará ainda de novas provas para se emendar.
O Espírito de Castelnaudary
Numa casinha, perto de Castelnaudary, havia barulhos estranhos e diversas manifestações que a faziam considerar como assombrada por algum gênio mau. Por esse fato, ela foi exorcizada em 1848, sem resultado. O proprietário, Sr. D..., que quis aí morar, morreu nela subitamente alguns anos depois; seu filho, que quis morar aí em seguida, recebeu, um dia, entrando num dos cômodos, uma vigorosa bofetada dada por uma mão desconhecida; como estava perfeitamente sozinho, não pôde duvidar de que não viesse de uma fonte oculta, e por isso decidiu deixá-la definitivamente. Há, na região, uma tradição segundo a qual um grande crime teria sido cometido nessa casa.
Tendo o Espírito que dera a bofetada sido evocado na Sociedade de Paris, em 1859, manifestou-se por sinais de violência; todos os esforços para acalmá-lo foram impotentes. São Luís, interrogado a seu respeito, respondeu: “É um Espírito da pior espécie, um verdadeiro monstro; nós o fizemos vir, mas não pudemos coagi-lo a escrever, apesar de tudo o que lhe foi dito; ele tem seu livrearbítrio: o infeliz faz dele um triste uso.”
P. Esse Espírito é capaz de aperfeiçoamento? – R. Por que não? Não o são todos, esse como os outros? É preciso, entretanto, esperar encontrar dificuldades; mas, por mais perverso que ele seja, o bem, retribuído pelo mal acabará por tocá-lo. Orai primeiro, e evocai-o daqui a um mês, e podereis julgar a mudança que se terá operado nele.
O Espírito evocado de novo mais tarde mostra-se mais tratável, depois pouco a pouco submisso e arrependido. Das explicações fornecidas por ele e por outros Espíritos, resulta que em 1608 ele morava naquela casa, onde assassinara o irmão por suspeita de ciumenta rivalidade golpeando-o na garganta enquanto ele dormia, e alguns anos depois, aquela que fizera sua mulher, após a morte do irmão. Morreu em 1659 com a idade de oitenta anos, sem ter sido perseguido por esses homicídios, aos quais se prestava pouca atenção naqueles tempos de confusão. Desde sua morte, não cessara de fazer o mal, e provocara vários dos acidentes ocorridos naquela casa. Um médium vidente que assistia à primeira evocação viu-o no momento em que se quis fazêlo escrever; ele sacudia fortemente o braço do médium: seu aspecto era apavorante; vestia uma camisa coberta de sangue, e segurava um punhal.
1. P. A São Luís. Tende a bondade de nos descrever o gênero de suplício desse Espírito. – R. É atroz para ele; foi condenado a permanecer na casa onde o crime foi cometido, sem poder dirigir seu pensamento para outra coisa que não esse crime, sempre diante de seus olhos, e ele se crê condenado a essa tortura por toda a eternidade. Ele se vê constantemente no momento em que cometeu seu crime; toda outra recordação lhe é retirada, e toda comunicação com um outro Espírito, proibida; não pode, na terra, ficar senão nessa casa, e se estiver no espaço, fica nas trevas e na solidão.
2. Haveria um meio de desalojá-lo, e qual seria? – R. Se vos quiserdes livrar das obsessões de semelhantes Espíritos, isso é fácil orando por eles: é o que sempre se negligencia de fazer. Prefere-se assustá-los com fórmulas de exorcismo que os divertem muito.
3. Dando às pessoas interessadas a ideia de orar por ele, e orando nós mesmos, seria possível desalojá-lo? – R. Sim, mas notai que eu disse orar, e não mandar rezar.
4. Faz dois séculos que ele está nessa situação; ele aprecia esse tempo como se estivesse vivo; ou seja, o tempo lhe parece tão longo ou menos longo do que se estivesse vivo? – R. Parece-lhe mais longo: o sono não existe para ele.
5. Foi-nos dito que para os Espíritos o tempo não existe, e que, para eles, um século é um ponto na eternidade; então não é o mesmo para todos? – R. Não, certamente, não é assim a não ser para os Espíritos que chegaram a um grau muito elevado de avanço; mas para os Espíritos inferiores, o tempo é por vezes bastante longo, sobretudo quando sofrem.
6. De onde vinha esse Espírito antes de sua encarnação? – R. Ele tivera uma existência entre as hordas mais ferozes e mais selvagens, e anteriormente vinha de um planeta inferior à terra.
7. Esse Espírito é punido bem severamente pelo crime que cometeu; se viveu entre hordas bárbaras, deve ter aí cometido atos não menos atrozes do que o último; foi punido da mesma maneira? – R. Foi menos punido, porque, mais ignorante, compreendia menos o seu alcance.
8. O estado em que se encontra esse Espírito é o dos seres vulgarmente chamados danados? – R. Absolutamente; e há outros bem mais aterrorizantes ainda. Os sofrimentos estão longe de ser os mesmos para todos, mesmo para crimes semelhantes, pois eles variam segundo o culpado seja mais ou menos acessível ao arrependimento. Para este, a casa onde cometeu seu crime é seu inferno; outros carregam-no em si, pelas paixões que os atormentam e que não podem saciar.
9. Este Espírito, apesar de sua inferioridade, sente os bons efeitos da prece; vimos a mesma coisa em outros Espíritos igualmente perversos e da natureza mais bruta; como explicar que Espíritos mais esclarecidos, de uma inteligência mais desenvolvida, mostrem uma ausência completa de bons sentimentos; que riam de tudo o que há de mais sagrado; numa palavra, que nada os toque, e que não haja nenhuma trégua em seu cinismo? – R. A prece não tem efeito a não ser em favor do Espírito que se arrepende; aquele que, impelido pelo orgulho, se revolta contra Deus e persiste em desvarios exagerando-os ainda, como fazem infelizes Espíritos, sobre esses a prece nada pode, e nada poderá senão no dia em que uma centelha de arrependimento se tiver manifestado neles. A ineficácia da prece é ainda para eles um castigo; esta alivia apenas aqueles que não estão inteiramente endurecidos.
10. Quando se vê um Espírito inacessível aos bons efeitos da prece, é uma razão para se abster de orar por ele? – R. Não, sem dúvida, pois cedo ou tarde ela poderá vencer seu endurecimento e fazer germinar nele pensamentos salutares.
Observação: Ocorre o mesmo com certos doentes sobre os quais os remédios agem a longo prazo; o efeito não é apreciável no momento; sobre outros, ao contrário, eles operam prontamente. Se se tiver em conta esta verdade de que todos os Espíritos são perfectíveis, e que nenhum está eterna e fatalmente destinado ao mal, compreender-se-á que, cedo ou tarde, a prece terá seu efeito, e que aquela que parece ineficaz à primeira vista não deixa de depositar germes salutares que predispõem o Espírito ao bem, se não os tocar imediatamente. Seria então um erro desanimar-se, porque não se tem sucesso
imediatamente.
11. Se esse Espírito se reencarnasse, em que categoria de indivíduos se encontraria? – R. Isso dependerá dele e do arrependimento que sentir. Várias conversas com esse Espírito trouxeram-lhe uma notável mudança no seu estado moral. Eis algumas das suas respostas.
12. Ao Espírito. Por que não pudestes escrever na primeira vez em que vos chamamos? – R. Eu não queria. Por que não queríeis? – R. Ignorância e embrutecimento.
13. Agora podeis deixar a casa de Castelnaudary quando quiserdes? – R. É-me permitido, porque tiro proveito dos vossos bons conselhos. P. - Sentis alívio por isso? – R. Começo a ter esperança.
14. Se vos pudéssemos ver, em que aparência vos veríamos? – R. Verme-íeis de camisa, sem punhal. – P. Por que não teríeis mais vosso punhal; o que fizestes dele? – R. Eu o amaldiçoo; Deus poupa-me de sua visão.
15. Se o Sr. D... filho (aquele que recebera a bofetada) voltasse à casa, far-lhe-íeis mal? – R. Não, pois estou arrependido. – P. E se ele quisesse ainda vos enfrentar? – R. Oh! Não me peçais isso! Eu não poderia dominar-me, estaria acima das minhas forças... pois não sou senão um miserável.
16. Entrevedes o fim de vossas penas? – R. Oh! Ainda não; é já muito mais do que eu mereço saber, graças à vossa intervenção, que elas não durarão para sempre.
17. Tende a bondade de nos descrever a situação em que estáveis antes que vos chamássemos da primeira vez. Compreendei que perguntamos isso para ter um meio de vos ser útil, e não por um motivo de curiosidade. – R. Já vos disse, eu não tinha consciência de nada no mundo senão do meu crime, e não podia deixar a casa onde o cometi a não ser para me elevar no espaço onde tudo à minha volta era solidão e obscuridade; não poderia dar-vos uma ideia do que é, nunca compreendi nada disso; assim que me elevava acima do ar, ficava escuro, ficava vazio; não sei o que era. Hoje em dia sinto muito mais remorsos, e não sou mais coagido a ficar nessa casa fatal; é-me permitido vaguear na terra, e procurar esclarecer-me pelas minhas observações; mas então compreendo melhor a enormidade de meus crimes horrendos; e se sofro menos por um lado, minhas torturas aumentam do outro pelo remorso; mas ao menos tenho esperança.
18. Se devêsseis retomar uma existência corporal, qual escolheríeis? – R. Ainda não vi o suficiente nem refleti o suficiente para saber.
19. Durante vosso longo isolamento, e pode-se dizer vosso cativeiro, tivestes remorsos? – R. Nem um pouco, e é por isso que sofri tanto tempo; foi somente quando comecei a sentir remorsos que foram provocadas, sem meu conhecimento, as circunstâncias que trouxeram minha evocação à qual devo o início da minha libertação. Obrigado, portanto, a vós que tivestes compaixão de mim e me esclarecestes.
Observação: Vimos, efetivamente, avarentos sofrer com a visão do ouro, que para eles se tornara uma verdadeira quimera; orgulhosos atormentados pela inveja das honras que viam conceder, e que não se dirigiam a eles; homens que mandaram na terra, humilhados pelo poder invisível que os constrangia a obedecer, e pela visão de seus subordinados que não se dobravam mais diante deles; os ateus sofrerem as angústias da incerteza, e ficarem num isolamento absoluto no meio da imensidade, sem encontrar nenhum ser que pudesse esclarecê-los. No mundo dos Espíritos, se há alegrias para todas as virtudes, há penas para todas as faltas; e aquelas que a lei dos homens não atinge são sempre golpeadas pela lei de Deus.
Deve-se notar ademais que as mesmas faltas, embora cometidas em condições idênticas, são punidas por castigos por vezes muito diferentes, segundo o grau de avanço intelectual do Espírito. Aos Espíritos mais atrasados, e de uma natureza bruta como este de que se trata aqui, são infligidas penas de alguma forma mais materiais do que morais, ao passo que é o contrário para aqueles cuja inteligência e sensibilidade são mais desenvolvidas. Para os primeiros é preciso castigos apropriados à rudeza de sua casca para lhes fazer compreender as contrariedades de sua posição, e inspirar-lhes o desejo de sair dela; é assim que a vergonha, por exemplo, que faria apenas pouca ou nenhuma impressão neles, será intolerável para os outros.
Neste código penal divino, a sabedoria, a bondade e a previdência de Deus para com as suas criaturas se revelam até nas menores coisas; tudo é proporcional; tudo é combinado com uma admirável solicitude para facilitar aos culpados os meios de se reabilitar; são-lhes creditadas as menores boas aspirações da alma. Segundo os dogmas das penas eternas, ao contrário, no inferno estão confundidos os grandes e os pequenos culpados, os culpados de um dia e os cem vezes reincidentes, os endurecidos e os arrependidos; tudo é calculado para mantê-los no fundo do abismo; nenhuma tábua de salvação lhes é oferecida; uma única falta pode aí precipitar para sempre, sem que seja levado em conta o bem que se fez. De que lado se acha a verdadeira justiça e a verdadeira bondade?
Esta evocação não é, portanto, devida ao acaso; como ela devia ser útil a este desgraçado, os Espíritos que velavam por ele, vendo que ele começava a compreender a enormidade dos seus crimes, julgaram que chegara o momento de lhe dar um auxílio eficaz, e trouxeram então as circunstâncias propícias. É um fato que vimos produzir-se muitas vezes.
Perguntou-se, a esse respeito, o que teria acontecido com ele se não pudesse ter sido evocado, e o que acontece a todos os Espíritos sofredores que não podem ser evocados ou nos quais não se pensa. A isso é respondido que os caminhos de Deus, para a salvação de suas criaturas, são inúmeros; a evocação é um meio de assisti-los, mas não é certamente o único, e Deus não deixa nenhuma no esquecimento. Aliás, as preces coletivas devem ter sobre os Espíritos, acessíveis ao arrependimento, sua dose de influência. Deus não podia subordinar o destino dos Espíritos sofredores aos conhecimentos e à boa vontade dos homens. Logo que estes puderam estabelecer relações regulares com o mundo invisível, um dos primeiros resultados do Espiritismo foi ensinar-lhes os favores que com a ajuda dessas relações eles podiam prestar aos seus irmãos desencarnados.
Deus quis, por esse meio, comprovar-lhes a solidariedade que existe entre todos os seres do universo, e dar uma lei de natureza por base ao princípio da fraternidade. Ao abrir esse campo novo ao exercício da caridade, ele lhes mostra o lado verdadeiramente útil e sério das evocações, desviadas até então de seu fim providencial pela ignorância e a superstição. Aos Espíritos sofredores, portanto, nunca faltou auxílio em nenhuma época, e se as evocações lhes abrem um novo caminho de salvação, os encarnados ganham talvez ainda mais, pois elas são para eles novas ocasiões de fazer o bem, instruindo-se ao mesmo tempo sobre o verdadeiro estado da vida futura.
Jacques Latour
Assassino, condenado pelo tribunal de Foix, e executado em setembro de 1864.
Numa reunião espírita íntima de sete a oito pessoas, que ocorreu em Bruxelas, em 13 de setembro de 1864, e à qual nós assistíamos, pediu-se a uma senhora médium que escrevesse; não sendo feita nenhuma evocação especial, ela traça com uma agitação extraordinária, em enormes caracteres, e depois de ter rasurado violentamente o papel, estas palavras:
“Estou arrependido! Estou arrependido! Latour.” Surpreendidos por esta comunicação inesperada, que nada provocara, pois ninguém pensava nesse desgraçado cuja morte a maioria dos assistentes até ignorava, algumas palavras de comiseração e de encorajamento são dirigidas ao Espírito; depois fazem-lhe esta pergunta:
Que motivo pôde vos empenhar a vir aqui em vez de em outro lugar, visto que nós não vos chamamos?
A médium, que é também médium falante, responde de viva voz:
“Eu vi que vós éreis almas compassivas e que teríeis compaixão de mim, ao passo que outros me evocam mais por curiosidade do que por verdadeira caridade, ou de mim se afastavam horrorizados.Começou então uma cena indescritível que não durou menos de meia hora. Juntando a médium à palavra os gestos e a expressão da fisionomia, é evidente que o Espírito se identificou com a sua pessoa; por vezes suas inflexões de desespero são tão dilaceradoras, ele pinta suas angústias e seus sofrimentos com um tom tão desolado, suas súplicas são tão veementes, que todos os assistentes ficam profundamente emocionados.
Alguns estavam mesmo assustados pela superexcitação da médium, mas pensávamos que a comunicação de um Espírito que se arrepende e que implora compaixão não oferecia nenhum perigo. Se tomou emprestados os órgãos da médium foi para descrever melhor sua situação e provocar mais interesse pelo seu destino, mas não, como os Espíritos obsessores e possuidores, com vistas a tomar conta dela para dominá-la. Isso lhe foi sem dúvida permitido em seu próprio interesse, e talvez também para a instrução das pessoas presentes.
Ele exclama:
“Oh! sim, compaixão! Preciso muito de compaixão, pois não sabeis o que sofro!... não, não sabeis; não podeis compreendê-lo.... é horrível!.... a guilhotina!... o que isso é, ao lado do que suporto agora? Não é nada; é um instante. Mas este fogo que me devora é pior, é uma morte contínua; é um sofrimento que não dá trégua nem repouso... que não tem fim!
“E minhas vítimas que estão aqui, à minha volta... que me mostram suas feridas...., que me perseguem com seus olhares!... Elas estão aqui, diante de mim, vejo-as todas... sim, todas..., vejo-as todas; não posso evitá-las!... E essa poça de sangue!.... e esse ouro sujo de sangue!... tudo está aqui! Sempre diante de mim?... Sentis o cheiro do sangue?... Sangue, sempre sangue!... Ei-las, essas pobres vítimas ; elas me imploram... e eu, sem compaixão, golpeio... golpeio... golpeio sempre!... O sangue inebria-me!
“Acreditava que depois da minha morte tudo estaria acabado; foi por isso que enfrentei o suplício; enfrentei Deus, reneguei-o!... E eis que, quando achava que estava aniquilado para sempre, um despertar terrível ocorre...; oh! sim, terrível!... estou cercado de cadáveres, de figuras ameaçadoras... caminho no sangue... Acreditava estar morto, e estou vivo!... É medonho!... é horrível! Mais horrível do que todos os suplícios da terra!
“Oh! se todos os homens pudessem saber o que há além da vida! Eles saberiam o que custa fazer o mal; não haveria mais assassinos, mais criminosos, mais malfeitores! Eu gostaria que todos os assassinos pudessem ver o que eu vejo e o que suporto... Oh! não, não haveria mais assassinos... é medonho demais sofrer o que estou sofrendo!
“Sei bem que mereci isto, ó meu Deus! pois não tive compaixão das minhas vítimas; repeli suas mãos suplicantes quando elas me pediam para poupá-las. Sim, eu mesmo fui cruel; matei-as covardemente para ficar com o seu ouro!.... Fui ímpio; reneguei-vos; blasfemei vosso santo nome... Quis fazer por esquecer; é por isso que queria persuadir-me de que vós não existíeis... Ó meu Deus! sou um grande criminoso! Compreendo isso agora. Mas não tereis compaixão de mim?.. Vós sois Deus, ou seja, a bondade, a misericórdia! Vós sois onipotente!
“Compaixão, Senhor! Oh! compaixão! Compaixão! Peço-vos, não sejais inflexível; livrai-me desta visão odiosa, destas imagens terríveis..., deste sangue..., das minhas vítimas cujos olhares me penetram até o coração como punhaladas.
“Vós que aqui estais, que me escutais, sois boas almas, almas caridosas; sim, eu o vejo, vós tereis compaixão de mim, não é? Vós orareis por mim... Oh! suplico-vos! Não me repilais. Vós pedireis a Deus para me tirar este horrível espetáculo da frente dos olhos; ele escutar-vos-á, porque sois bons... Peço-vos, não me repilais como repeli os outros... Orai por mim.”
Os assistentes, comovidos com seus lamentos, dirigiram-lhe palavras de encorajamento e consolo. Deus, disseram-lhe, não é inflexível; o que ele pede ao culpado é um arrependimento sincero e o desejo de reparar o mal que fez.
Visto que vosso coração não está endurecido, e lhe pedis perdão pelos vossos crimes, ele estenderá sobre vós a sua misericórdia, se perseverardes nas vossas boas resoluções para reparar o mal que fizestes. Não podeis sem dúvida devolver a vossas vítimas a vida que lhes tirastes, mas, se pedirdes com fervor, Deus vos concederá encontrar-vos com elas numa nova existência, na qual podereis mostrar-lhes tanta dedicação quanto fostes cruel; e quando ele julgar suficiente a reparação, recuperareis a graça junto dele. A duração do vosso castigo está assim nas vossas mãos; depende de vós abreviá-lo; prometemos ajudar-vos com nossas preces, e chamar sobre vós a assistência dos bons Espíritos. Vamos dizer em vossa intenção a prece contida no Evangelho segundo o Espiritismo para os Espíritos sofredores e arrependidos. Não diremos a prece para os maus Espíritos, porque, tão logo vos arrependeis, implorais a Deus, e renunciais a fazer o mal, não sois mais aos nossos olhos senão um Espírito infeliz, e não mau. Dita esta prece, e após alguns instantes de calma, o Espírito retoma:
“Obrigado, meu Deus!... oh! obrigado! Vós tivestes compaixão de mim; essas horríveis imagens se afastam... Não me abandoneis... enviai-me vossos bons Espíritos para me apoiar... Obrigado.”
Depois desta cena, a médium fica, durante algum tempo, cansada e abatida; seus membros estão extenuados. Ela tem a lembrança, primeiro confusa, do que acaba de ocorrer; depois, pouco a pouco, lembra-se de algumas das palavras que pronunciou, e que dizia contra sua vontade; sentia que não era ela que falava.
No dia seguinte, numa nova reunião, o Espírito se manifesta outra vez, e recomeça, durante alguns minutos somente, a cena da véspera, com a mesma pantomima expressiva, mas menos violenta; depois ele escreve, pela mesma
médium, com uma agitação febril, as palavras seguintes:
“Obrigado pelas vossas preces; uma melhora sensível se produz em mim. Orei a Deus com tanto fervor, que ele me permitiu que, por um momento, meus sofrimentos sejam aliviados; mas ainda verei as minhas vítimas... Ei-las! Eilas!... Vedes este sangue?...”
(A prece da véspera é repetida. O Espírito continua, dirigindo-se à médium: )
“Perdão por me apoderar de vós. Obrigado pelo alívio que trazeis aos meus sofrimentos; perdoai-me todo o mal que vos causei; mas preciso manifestar-me; só vós podeis...
“Obrigado! Obrigado! produz-se um pouco de alívio; mas não cheguei ao fim das minhas provas. Logo minhas vítimas voltarão mais uma vez. Eis a punição; eu a mereci, meu Deus, mas sede indulgente.
“Vós todos, orai por mim; tende compaixão de mim.” LATOUR
Um membro da Sociedade Espírita de Paris, que orou por esse infeliz Espírito e o evocou, obteve dele as comunicações seguintes, a diferentes intervalos:
I
Fui evocado quase logo depois da minha morte, e não pude comunicarme então, mas muitos Espíritos levianos tomaram meu nome e meu lugar. Aproveitei a presença em Bruxelas do presidente da Sociedade de Paris, e com a permissão dos Espíritos superiores, comuniquei-me. Virei comunicar-me na Sociedade, e farei revelações que serão um começo de reparação das minhas faltas, e que poderão servir de ensinamento para todos os criminosos que me lerem e que refletirem sobre o relato dos meus sofrimentos.
Os discursos sobre as penas do inferno fazem pouco efeito sobre o espírito dos culpados, que não creem em todas essas imagens, assustadoras para as crianças e os homens fracos. Ora, um grande malfeitor não é um Espírito pusilânime, e o temor da polícia age mais sobre ele do que o relato dos tormentos do inferno. Eis porque todos os que me lerem ficarão impressionados com minhas palavras, meus sofrimentos, que não são suposições. Não há um único padre que possa dizer: “Eu vi aquilo que vos digo, eu assisti às torturas dos condenados às penas eternas.” Mas, quando eu vier dizer: “Eis o que aconteceu depois da morte do meu corpo; eis qual foi meu desencantamento, ao reconhecer que não tinha morrido, como esperara, e que o que eu tomara pelo fim dos meus sofrimentos era o começo de torturas impossíveis de descrever!” então, mais de um se deterá à beira do precipício onde ia cair, cada desgraçado que eu detiver assim no caminho do crime servirá para resgatar uma de minhas faltas. É assim que o bem sai do mal, e que a bondade de Deus se manifesta por toda a parte, na terra como no espaço.
Foi-me permitido ser libertado da visão de minhas vítimas, que se tornaram meus carrascos, a fim de me comunicar convosco; mas ao deixar-vos revê-las-ei, e só esse pensamento me faz sofrer mais do que posso dizer. Fico feliz quando me evocam, pois então deixo o inferno por alguns instantes. Orai sempre por mim; pedi ao Senhor para que ele me liberte da visão das minhas
vítimas. Sim, oraremos juntos, a prece faz tanto bem!... Estou mais aliviado; já não sinto tanto o peso do fardo que me oprime. Vejo uma luz de esperança que brilha aos meus olhos, e cheio de arrependimento, exclamo: Bendita seja a mão de Deus; que seja feita a sua vontade!
II
O MÉDIUM. – Em vez de pedir a Deus para vos livrar da visão de vossas vítimas, exorto-vos a orar comigo para lhe pedir a força para suportar essa tortura expiatória.
LATOUR. – Teria preferido ficar livre da visão das minhas vítimas. Se soubésseis o que sofro? O homem mais insensível ficaria comovido se pudesse ver, impressas no meu rosto como com fogo, os sofrimentos da minha alma. Farei o que me aconselhais. Compreendo que é um meio um pouco mais rápido de expiar as minhas faltas. É como uma operação dolorosa que deve devolver a saúde ao meu corpo bem doente.
Ah! Se os culpados da terra me pudessem ver, como ficariam assustados com as consequências de seus crimes que, ocultos aos olhos dos homens, são vistos pelos Espíritos! Como a ignorância é fatal para tantos pobres coitados!
Que responsabilidade assumem aqueles que recusam a instrução às classes pobres da sociedade! Eles creem que com a polícia podem prevenir oscrimes. Como estão errados!
III
Os sofrimentos que suporto são horríveis, mas desde vossas preces, sinto-me assistido por bons Espíritos que me dizem para ter esperança. Compreendo a eficácia do remédio heroico que me aconselhastes, e peço ao Senhor que me conceda a força de suportar esta dura expiação. Ela é igual, posso dizê-lo, ao mal que fiz. Não quero procurar desculpar meus crimes; mas ao menos, salvo os poucos instantes de terror que precederam, para cada uma das minhas vítimas, o momento da morte, a dor, uma vez cometido o crime, cessou para elas, e aquelas que tinham terminado suas provas terrestres foram receber a recompensa que as esperava. Mas, desde meu retorno ao mundo dos Espíritos, não cessei de sofrer as dores do inferno, exceto nos momentos bem curtos em que me comuniquei.
Os padres, apesar do seu quadro assustador das penas que os condenados sentem, não têm senão uma ideia bem fraca dos verdadeiros sofrimentos que a justiça de Deus inflige aos seus filhos que violaram sua lei de amor e de caridade. Como fazer crer a pessoas sensatas que uma alma, ou seja, algo que não é material, possa sofrer em contato com o fogo material? É absurdo, e eis porque tantos criminosos se riem dessas pinturas fantásticas do inferno. Mas não acontece o mesmo com a dor moral que o condenado suporta, após a morte física. Orai por mim, para que o desespero não se apodere de mim.
IV
Agradeço-vos pelo objetivo que me fazeis entrever, objetivo glorioso ao qual sei que chegarei quando me tiver purificado. Sofro muito, e, no entanto, parece-me que meus sofrimentos diminuem. Não posso acreditar que, no mundo dos Espíritos, a dor diminui porque nos acostumamos a ela pouco a pouco. Não. Compreendo que vossas boas preces aumentaram minhas forças, e se minhas dores são as mesmas, sendo maior a minha força, sofro menos. Meu pensamento se reporta à minha última existência, às faltas que eu poderia ter evitado se tivesse sabido orar. Compreendo hoje a eficácia da prece; compreendo a força dessas mulheres honestas e piedosas, fracas na carne, mas fortes pela fé; compreendo esse mistério que os falsos sábios da terra não compreendem. Prece! Só essa palavra já excita a zombaria dos espíritos fortes. Espero por eles no mundo dos Espíritos, e quando o véu que lhes oculta a verdade se rasgar para eles, por sua vez virão prosternar-se aos pés do Eterno que eles desconheceram, e ficarão felizes de se humilhar para se reabilitarem de seus pecados e de seus crimes! Compreenderão a virtude da prece. Orar é amar; amar é orar! Então, eles amarão o Senhor e dirigir-lhe-ão suas preces de amor e de reconhecimento, e, regenerados pelo sofrimento, pois deverão sofrer, orarão como eu para ter a força de expiar e de sofrer, orarão para agradecer ao Senhor o perdão que terão merecido por sua submissão e sua resignação. Oremos, irmão, para me fortalecer mais ainda... Oh! obrigado, irmão, pela tua caridade, pois sou perdoado. Deus me livra da visão das minhas vítimas. Oh! meu Deus, sede abençoado durante toda a eternidade pela graça que me concedeis! Ó meu Deus! sinto a enormidade dos meus crimes, e precipito-me diante de vossa onipotência. Senhor! Eu vos amo de todo o coração, e peço-vos a graça de me permitir, quando vossa vontade me enviar para suportar na terra novas provas, vir aqui, missionário de paz e de caridade, ensinar as crianças a pronunciar vosso nome com respeito. Peço-vos poder ensiná-las a amar-vos, vós Pai de todas as criaturas. Oh! obrigado, meu Deus! Sou um Espírito arrependido, e meu arrependimento é sincero. Eu vos amo, tanto quanto meu coração tão impuro pode compreender esse sentimento, pura emanação de vossa divindade. Irmão, oremos, pois meu coração transborda de reconhecimento. Sou livre, quebrei meus ferros, não sou mais um reprovado, sou um Espírito sofredor, mas arrependido, e gostaria que meu exemplo pudesse reter no umbral do crime todas essas mãos criminosas que vejo prestes a se levantar. Oh! parai, irmãos, parai! Pois as torturas que preparais para vós mesmos serão atrozes. Não acrediteis que o Senhor se deixará sempre enternecer tão prontamente pela prece de seus filhos. São séculos de tortura que vos esperam.
O guia do médium. Tu não compreendes, dizes, as palavras do Espírito. Dá-te conta da sua emoção e do seu reconhecimento para com o Senhor; ele não crê poder melhor exprimi-la e prová-la do que tentando deter todos esses criminosos que ele vê e que tu não podes ver. Ele gostaria que suas palavras chegassem até eles, e o que ele não te disse, porque ainda o ignora, é que lhe será permitido começar missões reparadoras. Ele irá para perto de seus cúmplices procurar inspirar-lhes arrependimento, e introduzir nos seus corações o germe do remorso. Às vezes veem-se na terra pessoas que se acreditava serem honestas virem aos pés de um padre acusar-se de um crime. É o remorso que lhes dita a confissão da falta. E se o véu que te separa do mundo invisível se levantasse, verias com frequência um Espírito que foi o cúmplice ou o instigador do crime, vir, como fará Jacques Latour, procurar reparar sua falta, inspirando o remorso ao Espírito encarnado.
Teu guia protetor. A médium de Bruxelas, que tivera a primeira comunicação de Latour, recebeu dele mais tarde a comunicação seguinte:
“Não temais mais nada de mim; estou mais tranquilo, porém ainda estou sofrendo. Deus teve compaixão de mim, pois viu meu arrependimento. Agora, sofro desse arrependimento que me mostra a enormidade das minhas faltas.
“Se eu tivesse sido bem guiado na vida, não teria feito todo o mal que fiz; mas meus instintos não foram reprimidos, e obedeci a eles, não tendo conhecido nenhum freio. Se todos os homens pensassem mais em Deus, ou pelo menos se todos os homens acreditassem nele, não se cometeriam mais semelhantes crimes.
“Mas a justiça dos homens é mal entendida; por uma falta, às vezes leve, um homem é encerrado numa prisão que é sempre um lugar de perdição e de perversão. Ele sai dali completamente perdido pelos maus conselhos e os maus exemplos que de lá tirou. Se, no entanto, sua natureza for suficientemente boa e suficientemente forte para resistir ao mau exemplo, ao sair da prisão todas as portas lhe são fechadas, todas as mãos se retiram diante dele, todos os corações honestos o repelem. O que lhe resta? O desprezo e a miséria; o abandono, o desespero, se sentir em si boas resoluções para voltar ao bem; a miséria impele-o a tudo. Então também ele despreza seu semelhante, odeia-o, e perde toda consciência do bem e do mal, visto que se vê repelido, ele que no entanto tomara a resolução de se tornar um homem de bem. Para conseguir o necessário, ele rouba, e às vezes mata; depois, guilhotinam-no!
“Meu Deus, no momento em que minhas alucinações vão se reapoderar de mim, sinto vossa mão que se estende para mim; sinto vossa bondade que me envolve e me protege. Obrigado, meu Deus! na minha próxima existência, empregarei a minha inteligência, o meu bem para socorrer os desgraçados que sucumbiram e para preservá-los da queda.
“Obrigado, vós a quem não repugna comunicar comigo; não tenhais temor; vedes que não sou mau. Quando pensardes em mim, não imagineis o retrato que vistes de mim, mas imaginai uma pobre alma desolada que vos agradece a vossa indulgência. Adeus; evocai-me ainda, e pedi a Deus por mim.” LATOUR.
Estudo sobre o Espírito de Jacques Latour. Não se pode desconhecer a profundidade e o alto alcance de algumas das palavras que esta comunicação encerra; ela oferece ademais um dos aspectos do mundo dos Espíritos castigados, acima do qual, porém, se entrevê a misericórdia de Deus. A alegoria mitológica das Eumênides não é tão ridícula quanto se crê, e os demônios, carrascos oficiais do mundo invisível, que as substituem na crença moderna, são menos racionais, com seus chifres e seus pés de cabra, do que aquelas vítimas servindo elas próprias para castigar o culpado.
Admitindo-se a identidade desse Espírito, ficar-se-á talvez espantado com uma mudança tão rápida no seu estado moral; é, assim como fizemos observar em outra ocasião, que há com frequência mais recursos num Espírito brutalmente mau, do que naquele que é dominado pelo orgulho, ou que esconde seus vícios sob o manto da hipocrisia. Esse rápido retorno a melhores
sentimentos indica uma natureza mais selvagem do que perversa, à qual faltou apenas uma boa direção. Comparando sua linguagem com a de um outro criminoso mencionado a seguir, sob o título de: Castigo pela luz, é fácil ver qual dos dois é mais avançado moralmente, apesar da diferença de sua instrução e posição social; um obedecia a um instinto natural de ferocidade, a uma espécie de sobre-excitação, ao passo que o outro trazia para a perpetração de seus crimes a calma e o sangue-frio de uma lenta e perseverante combinação, e depois da morte desafiava ainda o castigo por orgulho; ele sofre, mas não quer admiti-lo; o outro é subjugado imediatamente. Pode-se assim prever qual dos dois sofrerá por mais tempo.
“Estou sofrendo, diz o Espírito de Latour, deste arrependimento que me mostra a enormidade das minhas faltas.” Há aí um pensamento profundo. O Espírito não compreende realmente a gravidade de seus crimes a não ser quando se arrepende deles; o arrependimento traz pesar, o remorso, sentimento doloroso que é a transição do mal ao bem, da doença moral à saúde moral. É para escapar disso que os Espíritos perversos se obstinam contra a voz de sua consciência, como aqueles doentes que repelem o remédio que deve curá-los; eles procuram se iludir, se atordoar persistindo no mal. Latour chegou àquele período em que a insensibilidade acaba por ceder; o remorso entrou no seu coração; seguiu-se o arrependimento; ele compreende a extensão do mal que fez; vê sua abjeção, e sofre por isso; eis porque ele diz: “Estou sofrendo desse arrependimento.” Na sua existência anterior, ele deve ter sido pior do que nesta, pois se se tivesse arrependido como o faz hoje, sua vida teria sido melhor. As resoluções que ele toma agora influenciarão sua existência terrestre futura; aquela que acaba de deixar, por mais criminosa que tenha sido, assinalou para ele uma etapa de progresso. É mais do que provável que antes de começá-la, ele era, enquanto na erraticidade, um desses maus Espíritos rebeldes, obstinados no mal, como se veem tantos. Muitas pessoas perguntaram que proveito se podia tirar das existências passadas, visto que não se guarda lembrança do que se foi nem do que se fez. Esta pergunta é completamente resolvida pelo fato de que, se o mal que cometemos está apagado, e se não resta nenhum traço dele no nosso coração, a recordação seria inútil, visto que não temos que nos preocupar com ele. Quanto àquele do qual não nos corrigimos inteiramente, nós o conhecemos pelas nossas tendências atuais; é a estas que devemos dirigir toda a nossa atenção. Basta saber o que somos, sem que seja necessário saber o que fomos. Quando se considera a dificuldade, durante a vida, da reabilitação do culpado mais arrependido, a reprovação da qual ele é objeto, deve-se abençoar Deus por ter jogado um véu sobre o passado. Se Latour tivesse sido condenadoa tempo, e mesmo se tivesse sido absolvido, seus antecedentes tê-lo-iam feitorejeitar pela sociedade. Quem teria querido, apesar do seu arrependimento, admiti-lo na sua intimidade? Os sentimentos que ele manifesta hoje como Espírito dão-nos a esperança de que, na sua próxima existência terrestre, ele será um homem de bem, estimado e considerado; mas suponde que se saiba que ele foi Latour, a reprovação ainda o perseguirá. O véu jogado sobre seu passado abre-lhe a porta da reabilitação; ele poderá sentar-se sem temor e sem vergonha entre as pessoas mais honestas. Quantos há que gostariam a qualquer preço de poder apagar da memória dos homens certos anos de sua existência!
Encontre-se uma doutrina que se concilie melhor do que esta com a justiça e a bondade de Deus! Além disso, esta doutrina não é uma teoria, mas um resultado de observações. Não foram os espíritas que a imaginaram; eles viram e observaram as diferentes situações nas quais os Espíritos se apresentam; procuraram explicá-las, e dessa explicação saiu a doutrina. Se a
aceitaram, é porque ela resulta dos fatos, e que ela lhes pareceu mais racional do que todas aquelas emitidas até hoje sobre o futuro da alma. Não se pode recusar a essas comunicações um alto ensinamento moral? O Espírito pôde ser, deve mesmo ter sido ajudado nas suas reflexões e sobretudo na escolha de suas expressões, por Espíritos mais avançados; mas, em semelhante caso, estes últimos não o assistem senão na forma e não nofundo, e nunca põem o Espírito inferior em contradição consigo mesmo. Eles puderam poetizar em Latour a forma do arrependimento, mas não o teriam feito exprimir o arrependimento contra sua vontade, porque o Espírito tem seu livrearbítrio; eles viam nele o germe de bons sentimentos, é por isso que o ajudarama expressar-se, e assim contribuíram para desenvolvê-los ao mesmo tempo que chamaram sobre ele a comiseração. Haverá algo de mais comovente, de mais moral, de natureza a impressionar mais vivamente do que o quadro deste grande criminoso arrependido, exalando seu desespero e seus remorsos; o qual, no meio de suas torturas, perseguido pelo olhar incessante de suas vítimas, eleva seu pensamento a Deus para implorar sua misericórdia? Não está aí um salutar exemplo para os culpados? Compreende-se a natureza de suas angústias; elas são racionais, terríveis, ainda que simples e sem encenação fantasmagórica. Talvez pudéssemos espantar-nos com tão grande mudança num homem como Latour; mas por que ele não se teria arrependido? Por que não haveria nele uma corda sensível vibrante? O culpado seria então destinado ao mal para todo o sempre? Não chega um momento em que se faz a luz na sua alma? Esse momento chegara para Latour. Está precisamente aí o lado moral de suas comunicações; é o entendimento que ele tem de sua situação; são seus pesares, seus projetos de reparação que são eminentemente instrutivos. O que se teria achado de extraordinário em que ele se arrependesse sinceramente antes de morrer; que ele tivesse dito antes o que disse depois? Não se têm inúmeros exemplos disso? Um retorno ao bem antes de sua morte teria passado por fraqueza os olhos da maioria de seus semelhantes; sua voz de além-túmulo é a revelação do futuro que os espera. Ele está absolutamente certo quando diz que seu exemplo é mais próprio a emendar os culpados do que a perspectiva das chamas do inferno e mesmo do cadafalso. Então, por que não lho dariam nas prisões? Isso faria refletir mais de um, tal como temos já vários exemplos. Mas como acreditar na eficácia das palavras de um morto, quando se crê que quando se morre acaba tudo? No entanto, virá um dia em que se reconhecerá esta verdade de que os mortos podem vir instruir os vivos. Há várias outras instruções importantes a tirar destas comunicações; primeiro, é a confirmação deste princípio de eterna justiça, de que o arrependimento não basta para colocar o culpado na categoria dos eleitos. O arrependimento é o primeiro passo para a reabilitação que apela para a misericórdia de Deus; é o prelúdio do perdão e do abreviamento dos sofrimentos; mas Deus não absolve sem condição; é preciso a expiação e sobretudo a reparação; é o que Latour compreende, e é para isso que ele se prepara.
Em segundo lugar, se se comparar este criminoso ao de Castelnaudary, encontra-se uma grande diferença no castigo que lhes é infligido. Neste último, o arrependimento foi tardio e por conseguinte a pena mais longa. Esta pena é ademais quase material, ao passo que em Latour o sofrimento é antes moral; é que, como dissemos anteriormente, em um a inteligência estava bem menos desenvolvida do que no outro; era preciso algo que pudesse impressionar seus sentidos obtusos; mas as penas morais não são menos dolorosas para aquele que chegou ao grau exigido para as compreender; pode-se avaliá-las pelas queixas que Latour exala; não é a cólera, é a expressão dos remorsos logo seguida de arrependimento e desejo de reparar, a fim de aperfeiçoar-se.
Capítulo VII - Espíritos endurecidos
LAMENNAIS.
ERASTO.
JEAN REYNAUD.
1864, traçava do inferno:
Observação: Certos Espíritos não consideram como sofrimentos senão os que lhes lembram as dores físicas, embora convindo que seu estado moral é intolerável.
R. Ela havia vivido na preguiça beata e na inutilidade da vida monástica.
– Credes que ele tinha uma missão divina? – R. Que me importa isso! P. – Qual é vossa opinião sobre o Cristo? – R. O filho do carpinteiro não é digno de ocupar meu pensamento.
R. Pergunta inútil. P. – Se eu o entendo, outros podem ter necessidade de explicações. – R. Não me incomodo com isso.
R. Não te incomodes com isso, não te diz respeito; começa orando por mim como pelos outros, depois veremos. P. – Se não me ajudardes com vosso arrependimento, a prece será pouco eficaz. – R. Se falares em vez de orar, avançar-me-ás pouco.
Capítulo VIII - Expiações terrestres
fizera sofrer. Obtive essa permissão, e Deus deixou-me o direito, pelo meu livrearbítrio, de ampliar meus sofrimentos morais e físicos. Graças ao auxílio dos bons Espíritos que me assistiam, persisti na minha resolução de praticar o bem, e agradeço-lhes por isso, pois eles me impediram de sucumbir na tarefa que eu assumira.
mendigos.
JULIENNEMARIE.
JULIENNE-MARIE.
cujas figuras, cada vez mais benevolentes, acabaram por desaparecer. Então, foi como uma nova vida para mim; a esperança substituiu o desespero e agradeci a Deus com todas as forças da minha alma. A voz me disse em seguida: “Príncipe!” e eu respondi: “Não há aqui outro príncipe senão o Deus onipotente que humilha os soberbos. Perdoai-me, Senhor, pois pequei; fazei de mim o servidor dos meus servidores, se tal é a vossa vontade.”
O Sr. de G..., a quem o fato foi relatado, lembrou-se dele perfeitamente.
ERASTO.
benfazejo. Os últimos deveres foram-lhe prestados de maneira simples, mas decente; o secretário da prefeitura se colocara à frente do cortejo fúnebre.
multidão de espíritos.
CLARA.
conduzindo aquela que podia servir-se dos olhos. Evocação em Paris, em maio de 1865.
– R. Perfeitamente. Durante algum tempo acreditei ser ainda do vosso mundo, mas agora sei muito bem que não sou mais.
(Paris, 1863.)